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Afrodite

Iniciado por Ziva75, Agosto 22, 2016, 08:59:48

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Ziva75

No princípio dos tempos, Eros foi incubado pela Noite a fim de realizar o prodígio da criação. O Amor foi precedido pelos portadores do destino e outros símbolos adversos relacionados com o esquecimento, o temor, a abominável velhice, a insídia e o ódio. Até então a luz não iluminava essa região escura da existência; portanto, a fim de afirmar seu sentido vivificador, a potência noturna engendrou uma entidade complementar, o Afeto, para que servisse de guia positivo às cumplicidades e de contraponto às dores que provocam o pranto. Antes mesmo que existisse a totalidade dos seres animados, sentia-se a ausência de símbolos para combater a fome, a violência, os crimes e as demais ações aziagas daqueles seres tenebrosos, netos e descendentes do Caos, cuja obra no mundo até hoje provoca tristeza e acarreta o vazio que se percebe no coração nas ocasiões mais infelizes. O vigor inigualável de Eros, relacionado com agitamentos revolucionários ou de renascimento interior, criou um dos sentidos mais profundos do ser: pôs em movimento a vida, ativou os sentidos e provocou o despertar das emoções tanto nos pequenos seres como nos heróis. Perturbou a ordem desde então e, representado como uma Ker alada, uma Fúria semelhante à Velhice e à Peste, ainda realiza suas travessuras, disparando ao acaso suas flechas douradas a fim de incendiar de amor suas vítimas, sem distinção de sexo ou de idade. Existem aqueles que dizem que Eros, cujo nascimento antecipou ao de todos os deuses, foi contemporâneo da Terra e do Tártaro durante o primeiro impulso do Caos; outras vertentes o consideram fruto dos amores de Afrodite com Zeus, ou que, segundo
versões que se foram somando umas às outras com o passar do tempo, foi filho do Arco-Íris e do Vento Oeste, o que acentua seu caráter simbólico ao relacioná-lo com a inocência perfeita e com os jogos da luz que alegram o ânimo para recompensar as tormentas. Sua liberdade indômita, contudo, se parece com a das criaturas noturnas que não respeitam a nada nem a ninguém. Seu maior gozo consiste em romper a tranqüilidade. Diferentemente das demais entidades, o Amor transmite em sua eterna infância o símbolo de uma enganosa candura que mascara o inesperado com essa inocente perversidade que, eventualmente, altera todo o íntimo de suas vítimas, quando caem em estado de desamor ou sofrem o pânico que costuma perturbar a esperança dos amantes. A Eros pertence a unidade. Foi através dele que se tornou possível o primeiro abraço, o do Céu e da Terra, que propiciou o nascimento de todos os seres divinos e humanos. Emblema da perfeita harmonia, foi graças a ele que tomou impulso a fecundidade, que a arte da sedutora Afrodite embelezou com inúmeras atitudes que colocam os amantes em situação de alerta frente a quaisquer males que possam diminuir ou prejudicar seu estado de adoração mútua. Eros e Afrodite governam juntos o secreto e o público. São indiscretos, intimidadores e deliberadamente perturbadores. Com aparente ingenuidade, contempla-se a jovem formosa e o menino alado como um par de criaturas inofensivas; porém, são capazes de sacudir até as pedras e de remover as mais duras camadas protetoras do coração. Ela com seu cinto mágico; ele com seu arco e suas flechas na aljava; os dois se acompanham a fim de cativar de acordo com seus caprichos, ainda que finjamos negar sua influência em favor da conveniência e da segurança. No começo, seu poder é sutil: tão só um estremecimento aqui, um suspiro que brota acolá, a curiosidade que aviva ao reconhecer o ser amado e a fagulha levíssima que rapidamente se incendeia como lenha seca; depois disso, irremediavelmente asseteados, os enamorados sucumbem ao estrondo e o mundo parece se tornar pequeno para satisfazer sua paixão.
Surgem armadilhas, interpõem-se obstáculos ou as doses de amor são mal repartidas para impedir a reciprocidade ou arrastar à morte àqueles que não conseguem consumar seu furor. Para os raros afortunados, o destino lhes outorga a graça de restaurar a unidade sob a condição de que a libertina Afrodite não retire seus dons dos casais que alcançaram a estabilidade. Quando se faz a corte, os corpos se embelezam, os sentidos se apuram com o desejo de agradar e todos os movimentos se revestem de doçura. Se Eros funde, Afrodite aproxima; é ela que provoca o desejo, desdobra atenções que divinizam os amantes e os fazem se sentir eternos, leves, belos e únicos. Confiantes no inesgotável poder da deusa, alguns se descuidam dos riscos que espreitam no caminho das convenções, e é então que ocorrem as reações indesejadas: se cedem à frivolidade, perpetram o caos; outros não compreendem as leis do Amor até que o sofrimento os ensine a se relacionar com sabedoria para cultivar o sossego dos pares que, em momentos de reconhecimento sexual, de transformações internas e de satisfações harmônicas, absorvem o elixir afrodisíaco. A maioria não deslinda jamais a questão amorosa, nem chega a compreender seus desvarios. Para eles, é mais simples ceder à tentação do combate do que persistir nos corredores emocionais que os dois que se amam são levados a percorrer. Por essa razão a insídia reina à vontade quando fracassa a sedução, e as entidades noturnas se apoderam dos mortais sem trégua. Adorados pela magia envolvente de seus dons, Amor e Afrodite concedem ou negam seus favores aos mortais; os desafortunados partem desta vida sem conhecer o ressaibo dos prazeres sensuais. Também suscitam ciúmes, desencadeiam tragédias e revolvem as consciências adormecidas daqueles que acreditam possuir para sempre seu cônjuge, até descobrir que as travessuras de Eros provocaram a destruição de seu pequeno universo doméstico. Afrodite, a mais desejada e temida, inseparável de seu cortejo de cupidos, incorporou-se à assembléia dos deuses não por compartilhar
com eles uma mesma origem, mas pelo secreto atrativo de seu cinto mágico, que fazia com que aqueles que a vissem se enamorassem dela até entrarem em delírio. Não satisfeita com o seduzir nem com o desnudar-se provocador da túnica, a mais bela de todas as criaturas tentava homens e deuses com um sem-fim de artimanhas e sortilégios que agora chamamos "afrodisíacos". Jamais se importou com a fertilidade, pois para isso existiam as deusas protetoras do matrimônio e da família; tampouco praticou virtudes domésticas, e à sua identidade não corresponde qualquer tipo de amarra. Afrodite é para a liberdade o que o calor significa para a chama. Em seu nome multiplicaram-se os aromas, as carícias, as poções, as texturas, as sementes, as invocações, os encantamentos, qualquer coisa ou recurso, contanto que se pudesse assenhorear até do mais profundo alento do ser amado. Eterna infiel, desleal e batalhadora, a portadora do amor se caracteriza por sua argúcia ardilosa. Sua magia inclui o mistério da transformação e, apesar da raiva que desperta em outras mulheres e deusas, somente ela é capaz de administrar a paixão e manipular a humanidade a seu capricho. Ela cura, restaura, une os diferentes, embeleza o feio, encontra metades perdidas, reconcilia, ilumina, enfeitiça o instinto, torna cego o mais lúcido dos seres humanos e lhe prodigaliza satisfações que não podem ser substituídas por quaisquer outros deleites. Companheira natural de Ares, suas relações com o deus da guerra confirmam que batalhar e amar são paixões afins, assim como o impulso e a ação. Incontroláveis os dois, ambas as divindades tramam a história dos homens e arrastam em seus múltiplos avatares as inconstâncias que costumam acompanhar o poder. Escolheu por esposo o incauto Hefestos, filho de Hera e imediatamente lhe pôs chifres. Feio e trabalhador, seu domínio sobre a forja e a bigorna de nada serviram para apagar sua claudicância e muito menos para esconder sua deficiência. O pobre Hefestos a amava acima de tudo no mundo; mas a volúvel Afrodite ia e vinha por muitos leitos e outros
tantos campos floridos, semeando deleites no reino dos instintos. Foi desta maneira que suscitou guerras históricas, tais como a sempre lembrada Guerra de Tróia. Inspirou as maiores tragédias e crimes espantosos. Em seu nome caíram reinos e homens que se tinham na conta de guerreiros temíveis. Até hoje há mulheres que, a maneira das antigas gregas, a invocam com devoção. Rogam por suas graças em voz alta. Renunciam a tudo com o fito de compartir seu poder ou, em casos extremos, recorrem ao misticismo com o objetivo de alcançar da divindade aqueles dotes que os seres humanos sozinhos não são capazes de obter. Seu mito é um dos mais perduráveis porque, ontem e hoje, um mistério indecifrável envolve a deusa da beleza. Tão odiada quanto invocada, Afrodite está sempre presente, sempre à espreita da paixão, sempre sedutora, sempre certeira. A interpretação de Hesíodo ilumina o mito de Afrodite com símbolos de sensualidade que a colocam acima de qualquer fantasia antiga ou moderna sobre a versatilidade do amor. Escreveu em sua Teogonia que, na primeira geração dos deuses, quando Gaia deu à luz Urano, em tudo semelhante a ela mesma, esperava que o deus do céu a protegesse por todos os lados e servisse, além disso, como um seguro assento para a felicidade dos deuses. Mas o astuto deus, que na mitologia grega não se destacou por suas façanhas nem ganhou importância igual à de seus descendentes olímpicos, só demonstrou verdadeira grandeza quando, cheio de amor, se deslocou durante a noite e abraçou Gaia, estendendo-se sobre ela; foi prontamente definido como a primeira deidade masculina, fundando assim a rivalidade sexual e o afã de domínio. Além disso, Gaia gerou por si mesma, sem o auxílio do delicioso amor, as grandes montanhas, que seriam a morada das ninfas, e o mar estéril de ondas impetuosas. Só mais tarde decidiu unir-se a Urano, pois o cosmos não contava com outra coisa que não fosse produto de sua própria criação. Do matrimônio entre o Céu e a Terra nasceram Oceanos, Ceos, Crios, Hipérion e Japeto - um nome que
talvez inspirasse o de Gepeto, o amoroso carpinteiro que construiu Pinóquio e criou com ele um dos últimos mitos da idade contemporânea -, do mesmo modo que Réia, Têmis, Mnemósine, Febe, a coroada de ouro, e a amável Tétis. Ao final de tão grande estirpe nasceu Cronos, o mais astuto e temível de todos, o deus que se encheu de ódio contra seu próprio pai porque este emprenhava sua mãe vezes sem conta, mas não permitia que os filhos saíssem de seu ventre e ela, a Terra, a fim de protegê-los, os escondia debaixo de suas dobras mais profundas. Antes de conceber o furibundo Cronos, a Terra engendrou três ciclopes de peito altivo e dotados de um único olho circular localizado entre as sobrancelhas, chamados Brontes, Estéropes e o violento Arges, os quais dariam como presente a seu jovem sobrinho Zeus o trono e o raio - suas divisas supremas - quando este empreendeu a luta contra seu pai, o Tempo. Frutos também de Gaia, perturbadores por sua maldade, Cotos, Briareu e Giges foram os monstros de cem braços e cinqüenta cabeças que decidiram o triunfo de Zeus sobre os Titãs, aliados de Cronos. Tais gigantes, do mesmo modo que as Fúrias, nasceram quando o sangue do castrado Urano fecundou a Terra, que mais tarde daria à luz outro monstro, Tífon, produto de suas relações com seu filho Tártaro. Antes que existisse Afrodite, Urano impedia os partos de Gaia para que sua terrível progênie não visse a luz do dia nem o desafiasse. Inchada e dolorida, a Terra suspirava, mas isso não impedia que engravidasse mais uma vez. Lamentava-se entre juramentos e vinganças malignas, enquanto o Céu assumia o domínio, orgulhoso de suas más ações, até que cansada de se sujeitar às suas normas, forjou uma foice para atacá-lo e instigou seus filhos a enfrentarem-no, a fim de fazê-lo pagar por todos os ultrajes que havia cometido. Contudo, Cronos foi o único que atendeu ao chamado materno e, armado com a foice bem afiada, lançou-se contra seu pai em uma emboscada. Esperou que Urano se estendesse outra vez sobre Sua mãe durante a negra noite e rapidamente, de um único golpe, decepou-lhe
os órgãos genitais. Não obstante o corte certeiro, escaparam algumas gotas de sangue que se derramaram sobre a Terra quando o membro foi atirado ao mar, as quais fecundaram novamente Gaia, fazendo com que esta procriasse as poderosas Erínias, os grandes gigantes e um gênero de ninfas que os gregos denominaram melíades. O membro decepado de Urano ficou ali, vigorosamente embalado pelas ondas, lançando uma espuma que se alargava cada vez mais com o vaivém das águas. A espuma navegou primeiro até a ilha de Citera, depois as correntes marinhas orientaram-na até Chipre, em cujas praias se formou a partir dela uma formosa mulher, cingida com a mais bela coroa e que tomaria o nome dessa mesma espuma: Afrodite, ainda que depois a chamassem também Citéria, pois foi nessa ilha que ela primeiro desembarcou da concha em que navegava desnuda, em busca de uma morada. Embora insignificante, a ilha de Citera foi um ponto referencial de passagem nos tempos antigos. Dali Afrodite transladou-se para o Peloponeso e depois para Pafos, em Chipre, onde se instituiu a principal sede de seu culto. Acompanhada de Eros, por onde passava e pousava os pés brotavam flores, e as Estações, filhas de Têmis, adornavam-na com vestes de cores cambiantes. Rodeada por uma sugestiva revoada de pombas, emblema da lascívia, a nascida da espuma fazia-se acompanhar de seu condizente servo Hímero até quando foi levada ao Olimpo, onde se incorporou à tribo dos deuses, que não tardaram em torná-la também divina, apesar da aversão que provocara nas deidades femininas. Padroeira do amor, da beleza, do desejo e, por extensão, da fertilidade, Afrodite inspirou desde então a intimidade, as traições amorosas, os doces sorrisos, o prazer, o afeto e a mansidão, que eram chamados de Titãs por seu pai Urano quando este queria injuriá-los. Dentro da natural confusão mitográfica, considera-se também Afrodite filha de Zeus e Dione, a deusa dos carvalhos, em que se aninhavam as pombas e os pardais. O certo é que seu vínculo com a espuma celeste - que serpenteia revigorada pelo movimento das ondas
- embeleza sua posição de sedutora sem par. Amante infatigável, não se lhe conhece repouso sexual. Escolheu como esposo a Hefestos, o ferreiro coxo construtor das armas dos aqueus, ainda que, mesmo antes que os esponsais se consumassem, sua paixão se inclinasse para o impetuoso Ares, o contendor patrono das guerras, com quem gerou Fobos, Deimos e Harmonia, que fez passarem por filhos de seu matrimônio. Se Afrodite não tivesse permanecido por tempo demais no leito de Ares, os raios de Hélio não os teriam delatado. Cego de ciúmes, Hefestos forjou uma rede de bronze de trama tão fina, imperceptível e resistente como a de uma teia de aranha e a amarrou por todos os lados do tálamo nupcial. Afrodite regressou da Trácia cheia de desculpas para justificar sua ausência tão prolongada. Porém Hefestos, em vez de manifestar desagrado, anunciou que ele mesmo estava para sair em férias por um longo período na ilha de Lemnos, sua preferida. Segundo o previsto, Ares não tardou em atender ao chamado de Afrodite e imediatamente os dois se prontificaram a continuar seus amores sem imaginar que cairiam enredados na armadilha ardilosamente estendida a seu redor. Quando quiseram levantar-se, os amantes se deram conta de que, desnudos e surpresos, teriam de esperar pelo regresso de Hefestos para serem libertados. E, enquanto o coxo se demorava, acreditando que os faria sofrer mais prolongando sua ausência, os dois se aproveitavam da oportunidade inesperada em nome da paixão. Encolerizado, o ferreiro não se contentou em corroborar o adultério de sua mulher, mas chamou ainda a assembléia dos deuses em altas vozes para que todos testemunhassem sua desonra. A lição, todavia, não se fez esperar: divididas por pudor ou porque já percebiam o brotar de uma sedução íntima, as opiniões emitidas perante o enredo dos amantes não satisfizeram o esposo traído. As deusas, por sua vez, demonstrando o falso pudor com que administravam a seu convir uma fragilidade dissimulada, negaram-se a presenciar tal discussão e preferiram ficar mexericando em seus
próprios aposentos. Os deuses quase não davam atenção às queixas de Hefestos porque todos se deleitavam com as formas saborosas da bela Afrodite, invejando a sorte do aprisionado e sorridente Ares. O ferreiro gritava que não deixaria sua esposa em liberdade até que lhe devolvessem todos os presentes que dera a seu pai Zeus para que intercedesse em favor de seu infeliz casamento. Enquanto o insultado vociferava espumante de ódio, sem que ninguém lhe respondesse a favor ou contra, Apolo começou a sussurrar dissimuladamente aos ouvidos de Hermes: - Escuta, mulher alguma é melhor que Afrodite. O caso de Ares não é prisão, nem nada, pelo contrário, é um prêmio invejável... Não gostarias de estar em seu lugar, apesar da rede? Hermes jurou por sua própria cabeça a Apolo que não com uma, mas até com três redes, qualquer que fosse o castigo, mesmo à custa da desaprovação de todas as deusas, trocaria de lugar com Ares na cama com Afrodite, nem que fosse por uma única vez. O comentário fez os dois rirem tão estrondosamente que o quarto estremeceu e Zeus, com fingida solenidade, para não precisar devolver os presentes recebidos, ditou sua sentença: não competia a ele, o Pai dos Céus, nem a nenhum dos deuses olímpicos ali presentes, intervir nos assuntos particulares entre marido e mulher. Se alguma vergonha havia, era de Hefestos, por estar a exibi-la nua aos olhos de todos, logo nos braços de um amante tão aguerrido, vigoroso e, a olhos vistos, muito mais competente do que ele, pois Ares mostrava-se vitorioso e até mesmo divertido em uma situação tão ridícula. Hefestos, por outro lado, tão orgulhoso de sua rede invencível, portava-se como uma comadre vulgar ao proclamar sua desgraça aos olhos de todos, além de que, cúmulo de todas as tolices, ainda se atrevia a requerer a devolução de seus presentes sem recordar que os deuses jamais devolvem qualquer oferenda que lhes seja feita, muito menos o cobiçoso Pai do Céu. As situações mais dramáticas costumam coincidir freqüentemente com as de maior ridículo. Afrodite, presa ao leito com
seu amante pela rede do laborioso Hefestos, à vista de todos os deuses, constitui uma das cenas mais divertidas da mitologia grega. A partir dela se desprendem numerosas aventuras da deusa e outros acontecimentos reveladores da natureza dos imortais. Para Ares, por exemplo, não representavam qualquer afronta as reclamações e insultos do esposo ofendido. Sendo ele o deus da guerra, ainda mais se divertia com seus acessos de raiva e, sem se dar ao trabalho de separar seu corpo do de Afrodite, aproveitava a vulgaridade da ocasião para fanfarrear ou desafiar o infeliz Hefestos, passando-o por bobo, já que os cuidados que prodigalizava sua infiel esposa certamente não eram dos mais honrosos. Parado em total silêncio, de um dos lados da cama, Poseidon enamorou-se de Afrodite ao contemplá-la desnuda, mas fez o possível para que ninguém percebesse. Sentiu que um fogo o devorava, seu membro cresceu de desejo e não passava mais nada por sua mente senão a obcecada intenção de se unir também com ela, mesmo a preço dos maiores castigos. Senhor dos cavalos, deus do mar e dos terremotos, também conhecia os tremores imprevisíveis; fustigado pelos ciúmes que secretamente sentia de Ares, aparentou estar do lado de Hefestos e tomou a palavra para expor a todos uma solução que acreditava ser conveniente. - Já que Zeus se nega a atender ao esposo agredido - disse Poseidon diante dos amantes que continuavam na cama - e tampouco concorda em devolver os presentes que Hefestos lhe ofereceu a fim de ganhar seu apoio ao desposar Afrodite, eu me encarregarei de pressionar Ares a fim de que pague o equivalente e satisfaça assim a honra ofendida. - Sim, como não, assim ficará muito bem. Eu realmente desejo esta satisfação - concordou o desafortunado Hefestos em um tom tão lúgubre que deixava bem claro aos ouvidos de todos a dor do apaixonado ofendido. - Mas se Ares não cumprir sua parte, como é de esperar, então tu mesmo deverás ocupar o lugar dele na rede e, conforme jurei ainda há pouco, não poderão sair dela nem tu nem
Afrodite, até que eu me considere totalmente desagravado. Sábio como era, Apolo soltou uma gargalhada ao escutar uma ameaça tão ingênua: - Ficar na rede, tu disseste? Em companhia de Afrodite? Meu pobre Hefestos - disse-lhe o belo, virtuoso e maduro Apolo - mas então não te dás conta do que estás propondo? - É que ele não pode acreditar que Ares não cumpra o seu dever - apressou-se a intervir Poseidon, com aparente nobreza. - Porém, se assim for, se Ares faltar com a palavra e sair por aí a continuar com sua velhacaria, eu estou disposto não somente a cumprir seu dever como também a desposar Afrodite, a fim de resgatar-lhe a honra e protegê-la de novas espreitas. Então os deuses que ali se achavam congregados deliberaram, sempre movidos pela simpatia que lhes despertava a apetecível Afrodite, decidindo que Hefestos deveria libertar seu rival Ares para que este regressasse à Trácia sem causar maiores problemas, ao passo que Afrodite deveria retornar a Pafos, sua ilha nativa de Creta, a fim de que a espuma que a havia gerado renovasse sua virgindade quando se banhasse no mar. A indiscrição de Hefestos, para sua desgraça, marcou-o como o maior e mais ingênuo cornudo na história de todos os tempos. Já totalmente esquecida do episódio, Afrodite banhava-se em suas águas primordiais e flertava como se nada tivesse acontecido, enquanto Hefestos continuava sofrendo no calor de sua forja. Logo Hermes foi visitá-la a fim de lhe confessar seu amor e adulá-la com doces palavras. Afrodite, como era seu costume, desprendeu o mítico cinturão para se deitar com ele durante toda uma noite sobre as areias mornas das praias cretenses, e juntos geraram Hermafrodito, essa criatura estranha, exposta a cultos e interpretações acomodatícias, que se distinguiria por seu duplo sexo desde que, segundo as versões mais remotas, foi amado por Salmácis, a ninfa da fonte em que costumava se banhar. Cativada por sua beleza sem par, a náiade suplicou aos deuses para que fundissem seus corpos num só, a fim de que seu
abraço perdurasse para sempre. Os deuses atenderam seu rogo e da fusão de Salmácis com Hermafrodito surgiu a quimera bissexual, que em parte recorda o mito platônico dos seres que foram divididos em metades complementares. De acordo com o combinado, e uma vez que Ares jamais cumpriu o trato, assim como Hefestos nunca chegou a se divorciar de Afrodite, esta também acedeu às solicitações de Poseidon, com quem procriou Rodos e Herófilo. A tempo, Homero também cantaria em seus Hinos outros namoros memoráveis da deusa, como o protagonizado com o formoso e libertino deus Dionísio, do qual nasceria a uma criatura monstruosa, o próprio emblema da fealdade, que mal conseguia caminhar tão grandes eram seus genitais. Desse menino, chamado Príapo, contam-se muitas lendas; a mais difundida relaciona-se com as eternas ciumeiras de Hera que, incomodada pelas inúteis solicitações sexuais de Zeus a Afrodite, vingou-se nesse filho dela dotando-o do mais obsceno dos aspectos, para que quem ninguém esquecesse os efeitos da luxúria da deusa nascida da espuma. No entanto, pacífico como era, Príapo converteu-se no jardineiro por excelência, ofício em que honrava sua mãe. Desde então, ele é representado trazendo suas ferramentas de jardinagem, com as quais se dedicava ao cuidado das flores primaveris. Alguns mitógrafos asseguram que Zeus, irritado pela indiferença de sua filha adotiva, levou-a a enamorar-se perdidamente de um mortal, não obstante as exigências de sua condição de deusa. Certo é que, no mito afrodisíaco, conta-se que Enéias talvez fosse filho de Afrodite, fruto de seus amores com o troiano Anquises, rei dos dardânios e neto de Ilo, a quem ela enganou entrando à noite em sua choupana, disfarçada de princesa frígia. Ataviada com uma suave túnica vermelha e calçando sandálias de um tecido tão fino que mal se percebiam, Afrodite amou o troiano com grande ardor sobre um leito forrado de peles de ursos e leões, enquanto ao seu redor zumbiam acalentadoramente milhares de abelhas. Ao despertar nos primeiros raios da aurora, a deusa revelou ao
monarca sua verdadeira identidade, impondo-lhe um juramento de silêncio para que ninguém soubesse que se havia deitado com ele. Horrorizado, Anquises recordou-se que contemplar a nudez de uma deusa acarretava terríveis castigos, inclusive a morte, e lançou-se de joelhos perante ela, suplicando-lhe que tivesse piedade. Ardilosamente, Afrodite fingiu que se deixava convencer a perdoá-lo e logo lhe anunciou o nascimento de um filho, que se destacaria por suas ações heróicas e alcançaria grande fama. Homero recorda que, passado o primeiro espanto, Anquises reassumiu sua personalidade normal, e certa vez, quando bebia com alguns companheiros, foi perguntado se preferia dormir com uma mulher real, bonita e mortal como eles, ou com uma deusa, quem sabe a própria Afrodite, ao que ele respondeu parecer-lhe absurda a pergunta, pois havia conhecido o prazer de ambas as situações e qualquer comparação seria um verdadeiro disparate. Vigilante dos atos humanos e divinos, Zeus mantinha sempre um olho aberto sobre os assuntos do mundo e escutou claramente as palavras jactanciosas que eram proferidas pelos troianos. Nem bem Anquises acabava de alardear seu feito, caiu entre ele e os demais bebedores um raio do Olimpo, que seguramente teria lhe causado a morte não tivesse Afrodite interposto seu cinturão para proteger o amado. De repente, tudo estremeceu. Choveram chispas e fagulhas para todos os lados, e ainda que a deusa tivesse desviado o raio maléfico, a sacudida atingiu o infeliz falastrão de tal maneira que nunca mais pôde caminhar ereto, tampouco desfrutar dos prazeres do leito. Afrodite, movida ainda pelos rescaldos de sua paixão, nunca deixou de manifestar sua preferência pelos troianos durante a memorável batalha contra os gregos e, inclusive, continuou visitando Anquises até que o nascimento de Enéias viesse a termo. Ao trazê-lo ao mundo, porém, seu desejo apagou-se magicamente, desapareceu seu interesse e nunca mais pôs os olhos no amante. Inesgotáveis, as façanhas de Afrodite se revelam em suas horas olímpicas e posteriormente, em todas as aventuras dos amantes. Sua
figura enfeitiçante é invocada por guerreiros e reis, por pastoras e pelas mulheres mais refinadas. E ali se encontra Afrodite à espreita, seduzindo com sua beleza perfeita, com a mão sempre colocada à altura do cinto a fim de soltar a túnica nas ocasiões mais imprevistas.

Fonte: Livro Mulheres, Mitos e Deusas
"Treina-te para deixares ir tudo o que mais temes perder."