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As Górgonas

Iniciado por Ziva75, Agosto 22, 2016, 09:02:02

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Ziva75

Feitas de luz e de trevas, belas ou horrendas, aguerridas, insidiosas, sensuais, feiticeiras, amáveis, piedosas ou batalhadoras: a mitologia helênica abarcou todos os aspectos do comportamento humano ao discorrer sobre mulheres ou deusas. Toda conduta e todos os sonhos encontraram o depositário adequado para simbolizar a diversidade da vida e, em seu conjunto, formaram um vasto dicionário de nomes, rostos e idades que perdura através dos séculos como a mais elevada lição de humanidade. Ninfas, virgens, mães, amantes ou quimeras, os gregos cultivaram o costume de dotar cada uma com individualidade própria a partir das primeiras gerações de deuses, talvez para sublinhar sua certeza de que cada ser é único e insubstituível, porque foi chamado a consumar uma missão determinada pelo destino antes mesmo de seu nascimento. Há um signo distintivo de cada caráter, mas também um atributo que qualifica o personagem, o que faz da literatura grega um passeio exuberante por vozes e condutas que definem a vida. Assim como Circe é a feiticeira de lindos cabelos, a primeira Aurora surge com dedos cor-de-rosa; Nemertes tem a mesma inteligência do pai, e as cinqüenta irmãs que nasceram de Nereu, um dos deuses do mar, e de Dóris, filha de Oceano, distinguem-se umas das outras por suas bochechas ou por seus tornozelos, ou ainda pela delicadeza e habilidade com que praticam suas tarefas domésticas. Também divindades do mar, Forcis e sua esposa e irmã Ceto, por sua vez, geraram as Graias de belos pômulos, grisalhas de nascimento, a quem os homens e imortais chamaram anciãs. Também
tiveram Penférides, de túnica sem igual; Ênio, do manto de açafrão; e as três Górgonas, que habitavam no limite da noite junto às Hespérides de voz harmoniosa, cuja tarefa consistia em vigiar a macieira de pomos de ouro que Gaia presenteara a Hera por ocasião de seus esponsais com Zeus. As Hespérides também guardavam a Árvore de Ladon, o dragão abatido por Héracles, da qual procediam as maçãs que eram atiradas a bel-prazer pela ágil caçadora Atalanta, quem se recusava a casar a menos que aparecesse um homem capaz de vencê-la na corrida, e que condenava os pretendentes derrotados a morrer. Hipômenes aceitou o desafio; compadecida, a própria Afrodite veio aconselhá-lo e lhe presenteou três maçãs de ouro, como um subterfúgio para distrair a competidora. Deixando-as cair a intervalos pelo percurso, Atalanta não resistia à tentação de parar para recolhêlas e acabou perdendo a corrida. Segundo Hesíodo, coube às Górgonas Esteno, a poderosa, Euríale, a grande viajante, e Medusa, a rainha desventurada, encarnarem a monstruosidade feminina. As duas primeiras eram imortais e livres da velhice. A terceira, a mais astuta, era mortal. Com ela deitou-se, no mais macio dos prados, entre flores primaveris, o suave Poseidon, deus do mar de cabelos azulados, filho de Cronos e de Réia. Tão perturbadora quanto aberrante, converge em Medusa todo tipo de insinuações que costuma provocar tanto a rejeição de nossa cultura judaico-cristã como a atração do mistério. É a deusa do sexo, e pela abundância de sangue que brota de sua cabeça coroada de serpentes também simboliza a fecundidade. É por isso que a seus encontros amorosos com Poseidon juntavam-se alusões a campos floridos ou a lugares onde, por causa do coito ali celebrado, a relva costumava crescer em abundância. Narra Hesíodo em sua Teogonia que, quando Perseu cortou a cabeça de Medusa, brotaram de seu pescoço o imenso Crisaor e o cavalo alado Pégaso, cujos nomes se devem ao fato de Crisaor já trazer em suas mãos uma espada de ouro e Pégaso haver nascido junto às fontes de Oceano. Ao abandonar a terra em pleno vôo, o cavalo de asas
aproximou-se dos paramos dos imortais e habitou desde então a morada de Zeus, ajudando-o a carregar o raio e o trovão. Da união do próprio Pégaso com Calírroe, filha de Oceano, nasceu Gérion, o monstro de três cabeças morto por Héracles junto aos bois por ele guardados em Eritéia, animais de fronte larga que foram arrebanhados no mesmo dia e conduzidos até a cidade sagrada de Tirinto. A fecunda e tenebrosa Ceto, mãe das Górgonas, engendrou em uma caverna a outro monstro feminino em nada parecido com mortais ou deuses, a divina Equidna, uma criatura de mente vigorosa, metade uma jovem de rosto lindo, faces formosas e olhos vivazes, metade uma serpente terrível, enorme, brilhante e selvagem. Imortal e pérfida, Equidna é a eterna jovem retida para sempre embaixo da terra no país dos arimos. Mais tarde Ceto aceitou a corte de Tífon, o transgressor insolente, e pariu nada menos que o cão Orto, companheiro de Gérion, e depois o selvagem Cérbero, o cão de cinqüenta cabeças e voz brônzea, insaciável e feroz, que guardava o portão infernal. Em terceiro lugar, Ceto gerou a Hidra de Lerna, a perversa mãe de Quimera, que exalava um fogo indomado, enorme, tão violenta como rápidos eram seus pés. Hidra foi criada pela deusa Hera, que ficou imensamente irritada com o brutamontes Héracles porque este filho de Zeus tutelado por Atena finalmente matou sua protegida com a ajuda do belicoso Iolau. Nesse universo de monstros e personagens noturnos, as Górgonas representam uma forma auxiliar da luta dos filhos da Terra contra o poder incontido dos deuses. Criaturas aladas, com serpentes em vez de cabelos e mãos de bronze, sua deliberada fealdade se acentuava pelo nariz achatado, pela cara redonda e pela comprida língua exposta entre ferozes caninos de javali. Reinterpretadas ao longo do tempo, evocam as deformações da consciência consideradas, em psicanálise, pulsões pervertidas: sociabilidade, sexualidade e espiritualidade. Célebre por sua capacidade de transformar em pedra qualquer coisa ou ser que contemplasse, Medusa sobreviveu até os dias do
Renascimento não somente como emblema protetor das armaduras e máquinas de guerra, mas pelo forte sentimento de culpa que provoca em quem contempla sua cabeça decepada, o rosto do inconsciente que impede qualquer gesto reparador. E não basta a visão da verdade, não é suficiente enfrentar-se a culpa, é necessário resistir a ela porque, em seu horror implícito, o espanto da própria descoberta paralisa a quem se contempla através dela. Quiçá por seus efeitos inibidores mais ocultos, sua cabeça foi sepultada sob um túmulo na agora da cidade de Argos, onde se acreditava em sua dupla capacidade de intimidar amigos e inimigos. Sobretudo a partir do século V a.C. o rosto de Medusa começa a se humanizar. Torna-se a jovem alada com cabeça de serpentes de quem Héracles roubou um dos cabelos para presenteá-lo a Estérope, um dos três ciclopes nascidos de Gaia e Urano, também chamado Relâmpago. Diz-se que esse cabelo tinha a virtude de produzir tormentas e que foi utilizado para defender a cidade de Tegéia de um ataque inimigo. Em numerosos relevos e em algumas estátuas aparece, inclusive, uma medusa de belas feições no instante de sua morte. Sujeita também às interpretações de inúmeras versões, a mítica Medusa permanece, no entanto, vinculada à guerreira Atena, a quem responsabilizam por seus poderes funestos. Inclusive se chegou a supor que Palas, o gigante caprino alado, era o verdadeiro pai de Atena, e que esta agregou o nome da fabulosa criatura ao seu quando, após Palas tentar violá-la, esfolou-lhe a pele, com a qual fez a égide que sempre a acompanha; e também lhe arrancou as asas que, desde então, carrega nos próprios ombros. Outros helenistas asseguram que a pele de seu escudo não era de Palas, mas que fora esfolada da górgona Medusa depois desta ter sido decapitada por Perseu. Belas durante algum tempo, as Górgonas habitavam o país hoje conhecido como Líbia, no extremo ocidental das terras banhadas pelas águas do pai Oceano e, desde sua origem, simbolizam o inimigo que deve ser vencido. Aparentemente, a perseguição constante de Atena
contra Medusa proveio de um de seus olímpicos ataques de ciúmes, quando certa noite a Górgona se deitou com Poseidon no recinto de um de seus templos. Furibunda, a deusa transformou-a em um monstro alado de olhos deslumbrantes, com a língua permanentemente pendurada por entre presas de fera. Armou-a com garras afiadas e ornamentou-lhe a cabeça com serpentes em vez de cabelos. Depois a condenou a converter em pedra todos os homens nos quais pousasse seu olhar, de tal modo que a simples evocação de seu nome já era suficiente para causar horror. Robert Graves associa as Górgonas com a deusa tríplice primordial. Diz-se que usavam máscaras no intuito de espantar os estranhos, a fim de afastá-los dos mistérios que encerravam seus rostos. O certo é que, para Homero, só existia uma Górgona, refundida no Tártaro sob a forma de um espectro tão medonho que causou horror em Odisseu. Consta, no entanto, que os padeiros da Grécia pintavam máscaras de górgona em seus fornos para impedir que os intrometidos bisbilhotassem e deixassem passar as correntes de ar que poriam a perder toda a fornada. São muitos os atributos conferidos à decapitada Medusa. Aparentemente, Atena presenteou a Asclépio, o fundador da medicina, duas redomas de vidro contendo o sangue derramado do pescoço da Górgona ao se desprender a cabeça no momento do decepamento. Com o líquido retirado das veias do lado esquerdo, podia ressuscitar os mortos; com o sangue brotado do lado direito, matava instantaneamente. Também se acreditava que o sangue fora repartido entre a deusa e o médico, de tal modo que Asclépio utilizava-o para curar enquanto a deusa manipulava-o para destruir e instigar as guerras que depois ela mesma tutelava; dizia-se ainda que Erictônio1 havia recebido das mãos da deusa duas daquelas gotas para matar e curar, e que ele mesmo havia atado os recipientes com cintas douradas a seu corpo de serpente, a fim de prodigalizá-los segundo sua própria conveniência. O mítico Perseu, executor de Medusa, ofereceu a cabeça desta
como presente a Polidectes para ajudá-lo a se casar com Hipodâmia, uma vez que o jovem não tinha cavalo nem ouro para competir com a riqueza de seus rivais. Atena, inimiga jurada de Medusa, tendo escutado a conversa entre ambos, propôs-se a ajudar o herói guerreiro, no intento de consumar sua vingança. Conduziu-o primeiro a Dictérion, na ilha de Samos, a fim de que reconhecesse Medusa entre as máscaras das Górgonas que ali se costumava exibir. A seguir, fez-lhe a advertência de que nunca a olhasse de frente, mas somente em reflexo, e presenteou-o com um escudo brilhantemente polido que serviria para espelhá-la. Hermes entregou-lhe uma foice fabricada de diamante para decapitá-la; depois de gravar bem as instruções, Perseu dirigiu-se ao pé do monte Atlas para roubar o único olho e o único dente de que dispunham as três Graias, irmãs das Górgonas, muito parecidas com cisnes, com a promessa de devolvê-los desde que lhe informassem onde moravam as ninfas de Estígia, criaturas das quais deveria obter um par de sandálias aladas, um surrão mágico para guardar a cabeça cortada e o elmo negro da invisibilidade pertencente a Hades. No momento em que as Graias passavam o olho e o dente umas para as outras, Perseu deslizou por detrás de seu tríplice trono e lhes arrancou as peças das mãos com a maior facilidade, logrando a seguir a informação requerida. Depois disso obteve das ninfas as sandálias, o surrão e o elmo e dirigiu-se à outra margem do mar, encontrando as três Górgonas adormecidas entre restos de homens e animais que haviam sido petrificados por Medusa e que se haviam desgastado com as chuvas e o vento. Manteve os olhos fixos sobre o reflexo no escudo, conforme o haviam instruído, e cortou a cabeça de Medusa com um único golpe de foice. Para seu assombro, no mesmo instante brotaram do cadáver o cavalo alado Pégaso e o guerreiro Crisaor, com uma espada de ouro desembainhada na mão, ambos completamente desenvolvidos. Como ignorasse que eles haviam sido gerados por Poseidon no templo da ofendida Atena, apressou-se em guardar a cabeça no surrão mágico e fugiu espavorido até pôr-se a salvo nas
terras do sul, apesar de Esteno e Euríale, acordadas por seus novos sobrinhos, terem se levantado e acorrido em sua perseguição. Medusa, desde então, permaneceu escondida no mistério até associar-se com o novo enigma apresentado pelo animal marinho que leva seu nome.

Fonte: Livro Mulheres, Mitos e Deusas
"Treina-te para deixares ir tudo o que mais temes perder."