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O Livro das Memórias - Parte I

Iniciado por Hera, Outubro 09, 2016, 08:44:40

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Hera

Nas redondezas de uma cidade, adentrando as profundezas da floresta, encontra-se uma cabana. O dono da cabana era um velho que buscava o isolamento. Não era porque ele não gostava das pessoas. Na verdade, ele até sentia falta da companhia dos outros, das conversas e do contato alheio.
A solidão trouxe consequências drásticas a sua mente, e ele tinha medo de enlouquecer ainda mais. Ele já havia hesitado e tentado fazer uma visita à cidade mais próxima. No entanto, os olhares o fizeram mudar de ideia. Não aguentava aqueles olhares de pena que todos demonstravam ao olhar para ele. Um olhar de repudio e tristeza. Aquele olhar significava que todos sabiam. Não importava onde, todos o olhavam com aquele mesmo olhar. Era impossível, mas eles sabiam. Aqueles olhares não mentiam.

O velho havia entrado nesse tipo de loucura, que sua mente fraca, havia aceitado e se deixado levar assim como uma folha pelo vento da primavera. Desse jeito, a loucura o sucumbiu e o tornou um homem obcecado com a culpa que carregava em seu coração e a terrível memória em sua mente, pelo qual o assombrava pelo resto de sua vida miserável.
Havia uma fonte de água potável perto da cabana. De lá ele tirava a água para beber. Para a comida, ao redor de sua cabana ele cultivava frutas e vegetais. Não tinha como ele obter carne, e não foi uma perda tão grande. Sempre fora chegado mais a ter uma balança verde. E desse jeito, o velho se mantinha alimentado na floresta.

Como fazia todos os dias, o velho, ao acordar, se levantou da cama, preparou e comeu um rápido café da manhã e, ao terminar, andou pelo corredor até o armário da sala e de lá tirou um livro. O livro escolhido dessa vez era um com uma capa verde. Abriu na primeira página e leu o título: Rafael, o trapaceiro. Já lera quantas vezes aquele livro? Não sabia dizer. Fazia anos que não tinha um novo livro no armário. Mesmo assim ele servia. Os livros o ajudavam a combater a melancolia da solidão. Eles o levavam para longe da dura realidade em mundos onde ele podia se sentir bem ao lado de personagens interessantes e de seus feitos intrigantes.

Fechou o livro e foi para o lado de fora de sua casa sentar em sua cadeira de balanço, onde sempre lia. Após um tempo mergulhado na leitura, ele acabou sendo levado pelo sono e se pôs a dormir sem perceber.
Acordou à tarde. Quase na hora do pôr-do-sol. Ele havia dormido durante uma tarde e manhã inteira. Um dia inteiro de trabalho. No entanto ele não se importou tanto. Nos últimos dias o trabalho parecia insignificante. Comia pouco e dormia muito. Estava ficando preguiçoso. Poderia ser perigoso ter uma vida ociosa. Mas ele não se importava. De certa forma, havia vindo aqui para apodrecer sozinho, então para que adiar o sofrimento? Tinha algum sentido em se apegar a uma vida depressiva como a dele?

O sonho que teve naquela tarde o fez pensar nisso. Nele a realidade era totalmente diferente de agora. Nele ele era feliz. Nele ele ainda tinha uma família e amigos. Tudo era possível naquela realidade, pois ele era livre. Ninguém tinha o "olhar", pois nada havia acontecido. Tudo havia prosseguido como devia ter sido. A pior parte foi quando acordou e deixou aquela realidade ilusória para trás.

A brisa da floresta acabou atraindo o seu olhar triste até a floresta. A floresta e o sonho acabaram trazendo lembranças do único companheiro que teve desde que veio morar na cabana. Ele tornará os dias suportáveis por algum tempo.
Talvez ele estivesse na floresta, caçando pequenos animais para sobreviver. Fazia meses que não o via. Ele era um cachorro. Um Husky Siberiano, para ser mais exato. O velho o chamava de Aquiles. Ele o encontrou perdido pela floresta há cinco anos, quando ele ainda era um filhote. Aquiles não possuía o mesmo olhar que os outros, os olhos azuis dele só demonstravam alegria. Era como se ele gostasse de ficar com o velho. Isso fazia dele o melhor companheiro possível.

Então por que ele o deixou para trás? Perguntou-se o velho. Por que ele fugiria de alguém que ele tanto gostava? Porque ele cresceu e descobriu a verdade, sussurrou a voz em resposta na sua cabeça. O velho não gostava daquela voz. Era a voz de um covarde. Fora essa voz que o fez fugir de todos. A voz era de um louco que não confiava em ninguém, ela achava que todos sabiam. Aquela voz, no entanto, também era a sua.

Enquanto o velho olhava para a floresta pensando sobre seu cachorro há tanto tempo perdido, um homem veio em direção a sua cabana. O homem parecia ter em torno de 20 a 25 anos. Seu cabelo negro misturado ao seu sorriso gentil e olhos azuis exalavam um ar de juventude. Ele vestia um terno preto com uma gravata vermelha e uma camisa branca por dentro. Carregava uma maleta cinza na mão direita. A mão esquerda ocupava-se com um ritual que ele realizava estralando os dedos, por vez, com o polegar.

O velho não percebeu o jovem que vinha a sua casa até que o mesmo chamou por ele:

– Boa tarde, bom senhor! o velho quase deu um sobressalto da cadeira ao som da voz do inesperado visitante.

– Bo... boa tarde – respondeu o velho incrédulo com a imagem do jovem em frente a ele.

– Por acaso o senhor seria Rodrigo Oliveiro? – o homem falava sem tirar o sorriso do rosto.

– Sim – disse o velho questionando-se em relação ao quão real era aquele jovem a sua frente.

Teria a sua mente enlouquecida ao ponto de imaginar outra pessoa para fazer companhia em sua solidão? Ele não seguiu com o dialogo. Ocupava-se em analisar o homem da cabeça aos pés sem proferir nenhuma palavra. Repetindo o processo de novo e de novo. O recém-chegado seguiu adiante com a conversa:

– Ainda bem. A caminhada até aqui foi um sufoco. Cheguei a pensar que me perderia na floresta antes de acha-lo. Meu
nome é Henrique Sousa, mas pode me chamar de Henry. Um diminutivo para os bons amigos. Eu vim aqui como representante de um homem que acha que o senhor seria perfeito para um serviço.
O velho então, olhou nos olhos de Henry. Procurando algum sinal do olhar que o fez se afastar de todos, e naqueles olhos ele encontrou apenas gentileza.
Não confie, ditou a voz em sua cabeça. Os olhos mentem. O velho ignorou a voz. Pela primeira, tinha encontrado uma pessoa que não tinha o olhar. E isso o agradou profundamente.

– Por acaso é alguém que eu conhecia? – perguntou o velho.

– Duvido muito. Ele não sabia da existência do senhor até passar pela cidade próxima daqui. E me mandou aqui para checar se o senhor realmente existia. Pois se existisse, como é o caso, seria perfeito para o serviço que irei propor. E será que eu poderia entrar para tomar um rápido copo d'água? Eu fiquei a tarde toda perambulando por aqui. Estou com muita sede.
– É claro. – Nesse momento, Rodrigo já não se questionava se o homem era real ou não. Contentava-se apenas do fato de ter alguém com quem conversar.
Rodrigo levantou-se da cadeira de balanço, deixando o livro no assento.
– Entre – disse ele abrindo a porta e fazendo um gesto com a mão estremecida apontada para dentro da casa. Henry subiu os degraus da pequena escada, deu seus primeiros passos no alpendre e entrou na casa com Rodrigo vindo logo atrás.
Henry olhou ao redor e comentou:

– Que bela cabana o senhor tem aqui. Pequena, organizada e bem feita. – A cabana era como Henry havia dito. Quase todos os cômodos ficavam juntos numa mesma sala, porém eram separados. A cozinha ficava no canto da direita, do esquerdo havia uma poltrona antiga com visão para fora e armários com livros. A porta para o banheiro ficava entre os dois e bem ao lado, um pequeno corredor que levava ao quarto. E no meio de tudo uma mesa.

– Obrigado – disse Rodrigo olhando ao redor do cenário em que viveu por anos. Percebeu quão monótona e tediosa aquela cabana era aos seus olhos. Mesmo assim, fingiu falso orgulho

– É uma herança de família.
Rodrigo parou ao se dar conta de que a palavra invocava uma dor em seu coração. Deslizou a mão tremula até o peito e o apertou.

– Senhor? – perguntou Henry.

– Hmm?

– A água?

– Sim, claro. – Rodrigo foi para a cozinha, pegou uma jarra de madeira e despejou a água em um dos seus copos.

– Aqui está. – disse Rodrigo e entregou o copo a Henry.

– Obrigado. – Henry bebeu a água em um só gole e entregou o copo a Rodrigo.

– Deseja mais alguma coisa? – perguntou Rodrigo apreensivo

– Eu ainda tenho suco, ou talvez queira algo mais sólido? Eu tenho algo na geladeira...

– Não, obrigado. Eu estou satisfeito com a água. Pretendo ser rápido e direto com você Rodrigo. Logo ira anoitecer. Terminarei o mais rápido possível para aproveitar o resto de luz que me resta.

– É claro. Eu estou bastante curioso sobre esse serviço que mencionou. Mas antes, tomemos um assento.
O velho puxou a cadeira da mesa e ofereceu-a para Henry se sentar. Em seguida, tomou seu lugar na poltrona antiga. Virando-a para deixar de frente a cadeira.

– O resumo é: O cliente a quem represento me pediu para vir até aqui e ver se o senhor ainda vivia por aqui e se existia de fato. Como eu tenho a prova de sua existência em frente aos meus olhos, irei dizer o que o foi me dito: O meu cliente, que deseja manter completo sigilo durante a negociação e a realização do serviço, gostaria que o senhor cuidasse de um objeto precioso dele. Mantendo-o em segredo e seguro até que eu, e mais ninguém, venha busca-lo. Rodrigo levou seus olhos à maleta

– Por acaso seria essa maleta?

– Bem, é mais o que está dentro dela que importa.

– E o que seria?

– Veja o senhor mesmo.
Henry colocou a maleta em seu colo e, com um click solto no ar, abriu-a. Rodrigo olhou por cima e viu um grande livro com a capa desgastada.

– Um livro? Que surpresa.

– Esse livro faz parte de uma coleção de antiguidades do meu cliente. Sendo considerado um dos itens mais antigos da coleção e um dos mais raros. Poderíamos afirmar com certa certeza que esse livro seja único no mundo inteiro. Ele espera que o senhor possa ficar com o livro por um tempo ainda não determinado. A situação atual dele está, hmm, complicada, e até que ele possa resolvê-la, ele gostaria que o senhor o guardasse.
Rodrigo tomou um tempo de silêncio para pensar e, como sempre acontecia quando ele estava para fazer uma decisão, a voz veio: Não tome. Você pode entrar no meio de alguma confusão. Mande-o ir embora, antes que anoiteça.

– Eu... – hesitou em seguir a voz – Eu poderia pergunta do que se trata esse livro? Tem alguma historia por trás dele? Algo que eu deva ou poderia saber?

– Não acha isso demais?

– É claro. Foi uma pergunta muito ousada de minha parte. Apenas esqueça.

– Calma. Eu estou apenas brincando. O dono do livro permitiu que o senhor desse uma olhada nele. Sacie a sua curiosidade, só esperamos que guarde as palavras para o senhor até o tumulo.
Henry tirou o livro da maleta e o pôs nas mãos de Rodrigo, que se surpreendeu com a leveza, já que o livro era grosso demais.

– E sobre o que está escrito no livro?

– São memórias antigas. E, sendo o proprietário temporário delas, o senhor é o dono delas por agora. Então, aproveite.

– Você disse que o livro é antigo. Então ele deve ser escrito em alguma língua antiga, não? Eu não sei muito de latim além de uns ditados que eu aprendi e é difícil imaginar que eu ainda lembre algum deles agora.

– O senhor entendera quando abrir. Não tenha dúvida disso.
Rodrigo abriu um pouco o livro e levantou a cabeça esperando que Henry confirmasse a permissão. Henry meneou a cabeça em sinal de aprovação e Rodrigo foi em frente. Estava muito agradecido por ter um livro novo. Mesmo que temporário. Sabia os outros livros de cor, e a graça já havia sido perdida. E em suas mãos, diante dos seus olhos, havia um que ele não tinha lido ainda e era um antigo.

A curiosidade o comia vivo. Um livro antigo daqueles provavelmente seria um de história. Talvez contos antigos. Esperou inconscientemente pelo cheiro de livro novo, que não lembrava mais de como era, mas sabia que existia.
No entanto, o cheiro que saiu foi de velhice uma mancha de pó sobrevoou no ar e ele soprou para fora, não antes ter engolido o suficiente para uma onda de tosses.

A primeira página se revelou sem nada. Nenhuma palavra escrita, nenhuma linha traçada, apenas um branco amarelado pelos anos. A frustação era evidente no rosto de Rodrigo. Ele passou as folhas com pressa na esperança de encontrar qualquer coisa. E o resto se fez igual à primeira página, sem nada. Repassou de novo e de novo. Fechou o livro depois da terceira e cravou seus olhos com fúria em Henry.

– O que é isso? Algum tipo de piada?

– O que foi, senhor?

– Não tem nada escrito nesse livro.

– Tem certeza? Talvez o senhor não tenha visto direito. As páginas estão sujas demais. Por isso, precisa olhar com atenção para vê-las.
Rodrigo cessou a fúria momentânea assim que a notou, e abriu o livro novamente na primeira página. Não tinha nada escrito como antes. Então, abruptamente, assim como a escuridão que preenche o céu à noite, palavras surgiram e foram tomando lugar na página antes vazia. Rodrigo olhou para Henry e com os olhos arregalados disse:

– O que...

– Eu não te disse? interrompeu Henry Essas coisas antigas levam tempo. Você precisa ter paciência.
Ele havia deixado o seu sorriso contorcer um pouco. Controlou-se para mantê-lo daquele jeito. Rodrigo não notou. Já estava com os olhos fixados no livro antes que percebesse.
A página já estava quase toda preenchida com as palavras que pareciam vir do nada.
Dominado pela curiosidade, ele mirou na primeira palavra da primeira frase do primeiro paragrafo e começou a leitura silenciosa. As palavras eram diferentes da de sua língua. No entanto, ele conseguia entende-las como um nativo no idioma.

A sua leitura foi lenta, a idade o havia deixado lento. Antes ele podia ler e reler um livro de 400 páginas em apenas um dia, agora, dificilmente terminava um de 400 páginas em uma semana. Antes ele conseguia deslizar com as palavras e assim penetrar nas historias com tanta facilidade, seguir e vivencia-las em sua mente como se estivesse lá. Agora, no entanto, ele mal conseguia fazer isso.

A leitura, no começo, logo o perturbou. Ele já sabia, pelo primeiro paragrafo, de qual história aquele livro contava. Perfurou Henry com o olhar de um louco que viu aterrorizante verdade do seu passado e disse de leve, quase como um sussurro:

– Ele sabe – Deu três segundos e continuou elevando a voz...
Como ele pode saber?
Eu te disse! Gritou a voz em sua mente. Todos sabem. A notícia se espalhou! E não há ninguém que não a tenha visto. Eles sabem o que você fez. Todos eles. Ninguém é exceção. Todos sabem. Sussurrou a voz incessantemente em sua cabeça.

– O que aconteceu? – disse Henry com tom de zombaria.

– Fique longe de mim. – disse Rodrigo contorcendo-se na poltrona.

– O senhor está pálido. Parece até que viu um fantasma. Ou talvez... Um monstro.
Rodrigo jogou o livro em Henry com toda a força que seu corpo envelhecido permitiu e, saltando da poltrona de uma maneira que nenhum velho poderia imaginar ser possível, correu para o corredor. Henry segurou o livro com o máximo de cuidado usando a barriga como amortecedor enquanto se curvava para trás para diminuir o impacto.

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