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A Civilização Etrusca (parte-II)

Iniciado por Hera, Setembro 17, 2016, 11:01:08

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Hera

Um pouco mais sobre a civilização Etrusca

Apesar da quantidade conside­rável de túmulos e monumen­tos fúnebres desenterrados há muito tempo no solo da Etrúria, apesar dos numerosos textos que nos legaram historiadores gregos e romanos, o estudo das crenças etruscas en­cerra, ainda hoje, muitas lacunas e mistérios. A enigmática religião dos Toscanos suscita tantas apaixonadas controvérsias, tantas hi­póteses como as origens desse povo secreto, uma religião de que não se pode ler nenhum texto.

Em livro muito recente e monumen­tal, já assinalado, Georges Dumézil salienta que a excecional riqueza de material funerá­rio não permite ter um conhecimento preciso da teologia etrusca.


"Apesar do considerável acervo de trabalhos", escreve ele, "a religião etrusca permanece obscura. Quando falamos dela, vemos-nos na contingência de nos estender­mos sobre aquilo que é mais bem conhecido, em particular as diversas formas de adivinha­ção, que tanto interessaram o Estado e os eruditos romanos. Mas isso
certamente desequi­libra a exposição, a expensas da teologia, essa parte soberana de toda religião, a expen­sas das festas do calendário, praticamente ignoradas. Tarefa espinhosa é querer descre­ver a religião de um povo de que não se pode ler nenhum texto."

A seguir, aludindo às numerosas cidades da confederação etrusca e, consequentemente, ao caráter variado da religião etrusca — já que cada uma dessas cidades tinha um sistema de crenças próprias — Georges Dumézil acrescenta que as escavações arqueológicas efetuadas nas tumbas etruscas não fornecem indicações claras sobre os ritos religiosos praticados aqui ou ali.

Divindades obscuras, herméticas, incompreensíveis do mesmo parecer disse o notável etruscólogo italiano Massimo Pallottino que, depois de 40 anos de pesquisas consagradas aos santuários, aos templos, as inscrições e aos monumentos funerários, constata que a interpretação do fato religioso etrusco continua sendo uma empresa difícil. Nem ele nem a numerosíssima equipe de arqueólogos que, sob sua direção, se esforça para decifrar o significado das inscrições e pinturas encontradas nas tumbas da antiga Etrúria conseguiram.

Até o presente, saber se a religião etrusca, fatalista, dominada por divindades obscuras e incompreensíveis, propõe ao homem etrusco princípios éticos precisos. Demonstraram, ao certo, que a vida pública e privada dos Etruscos era inteiramente regida pela religião. Mas nada prova que essa prática religiosa repousava sobre bases metafísicas e morais definidas.

As tríades etruscas

Diante das dificuldades que apresenta o estudo intrínseco dessa estranha religião, certos autores procuraram contornar o obstáculo adotando o que Georges Dumézil chama de "método comparativo" . Já que o fato religioso etrusco resiste, por si mesmo, a toda tentativa de síntese, por que não analisar algumas de suas componentes para compará-las e confrontá-las com outras religiões. Por sua parte, Georges Dumézil dedica bastante espaço à tríade suprema do panteão etrusco — (Tinia-Una-Minerva) — e afirma, apoiado em sólidas provas arqueológicas, que essa tríade reflete o caráter em parte indo-europeu da religião toscana. " Toda", escreve ele, " religião que não confira uma ordem, uma estrutura, mais ou menos rígida, mais ou menos coerente, mais ou menos completa, à massa de suas representações, notadamente de seus deuses.

Os Etruscos não iam ser exceção... As escavações confirmam que, antes do exemplo do Capitólio, os Etruscos tinham um gosto especial pelos templos com três cellae e, portanto, pelas associações de três deuses."

Correspondências entre Etruscos e Caldeus


Outros etruscólogos, tentam encontrar as fontes da religião dos Toscanos na Ásia Menor. Temos assim defensores da origem oriental dos Etruscos. A descoberta, em 1877, do famoso fígado de Plaisance, que permitiu um trabalho de hepatomancia comparada, conferiu certa plausibilidade a essas pesquisas. Parece, de fato, existirem relações de filiação entre esse fígado etrusco e os numerosos fígados achados no espaço analítico e mesopotâmico, assim que Jean Nougayrol observa que, num fígado caldeu encontrado em Mari, a vesícula biliar tinha cinco linhas de inscrições, a quarta das quais parecia significar "e a chuva no país inimigo" . Ora, segundo Plínio, os arúspices etruscos atribuíam a vesícula a Netuno, deus da chuva. Quanto ao fígado de Plaisance, tem também cinco divisões inscritas, tendo a segunda a letra N, que se pode considerar como a inicial de Netuno. Jean Nougayrol, em artigo muito bem documentado, cita muitas outras correspondências entre o fígado de Plaisance e os fígados da Ásia Menor. A Etrúria, segundo esse autor, não faz mais do que prolongar os arúspices da Mesopotamia, e as analogias que observamos entre Etruscos e Babilônios não podem decorrer de mero acaso. "As práticas dos arúspices assírio-babilonicos" , conclui Jean Nougayrol, " são uma tradição contínua que nos é revelada, 'já pronta', no limiar do segundo milênio antes de nossa era, e prossegue acrescida de comentários sutis ou de trabalhos críticos, até o alvorecer de nossa era. As mais belas tabuinhas 'hepatoscópicas' do Louvre datam dos anos 90 da época seleucida... Também chegaram ate nós maquetes e planos anatômicos da época sargonida... Por outras palavras, as maquetes etruscas, onde quer que as localizemos, sempre encontram réplicas contemporâneas no Oriente."

O deus Tin: um jovem nu segurando na mão o raio

O etruscólogo italiano Pallottino critica energicamente essa tese. Como vimos, ele considera os Etruscos originários da própria Etrúria. São autóctones, aborígenes, que não podem ter sofrido senão a influência dos po­vos que viviam nas proximidades de seu ter­ritório, ou entretendo com eles relações co­merciais continuadas. Ora, é claro que os vi­zinhos mais próximos, os principais clientes e fornecedores da Etrúria são os colonos gregos há muito instalados no Sul da Itália. Logo, o mistério da religião etrusca deve esclare­cer-se pela aproximação com as crenças gre­gas. Pallottino põe então em evidência o pa­rentesco existente entre o panteão etrusco e o panteão grego. Sua demonstração, é preciso reconhecer, não é desprovida de vigor.

Segundo esse autor, os Gregos forne­ceram aos Etruscos a maioria de suas divin­dades. Assim os deuses etruscos Letha, Laran, Maris, tomam emprestados alguns de seus traços do deus grego Ares. De resto, isso não exclui certas influências orientais que aparecem nitidamente no caso de algumas divindades guerreiras etruscas, como o deus Tin. Este, em numerosos afrescos que ornam as tumbas de Tarquínios, de Caere ou de Vulci, é representado por estatuetas de bronze com os traços de um jovem nu, segu­rando na mão o raio. Mas essas influências orientais não aparecem senão raramente no panteão etrusco.

E Pallottino cita numerosos exemplos de deuses gregos, honrados nas cidades etruscas desde os primórdios de sua história. Os Etruscos, ao adotá-lo, nem mesmo senti­ram necessidade de modificar o panteão gre­go. " Não faltam divindades gregas introduzi­das diretamente na Etrúria, como Heracles, que se converte no Hércules etrusco e no Hércules romano. Apolo, que na Etrúria se tor­na Apulu ou Aplu; Artemis que se torna Artumes ou Aritimi. Deuses, mitos e culto se re­gulam pelas formas gregas correspondentes. Desse sincretismo e dessas 'contaminações', os monumentos e os textos etruscos originais são outros tantos testemunhos."

As tabuinhas de Pyrgi: novo enigma

Mas eis que uma descoberta arqueo­lógica bem recente vem complicar ainda mais o estudo das fontes religiosas etruscas. Trata-se de tabuinhas inscritas em etrusco e em púnico encontradas em 1963 no santuário de Pyrgi, um dos portos de Caere. Graças à téc­nica do carbono 14, essas tabuinhas foram datadas: remontam, ao que tudo indica, ao iní­cio do século V a.e.c.

O epigrafista francês André Dupont-Sommer, que estudou longamente esse docu­mento excepcional, traduz assim a parte púnica dessa inscrição:


"À Dama Astartéia,

Esse lugar santo é o que foi feito e dado por Tebarie Velianas, rei de Caere, no mês do sacrifício do Sol, como seu (próprio) donativo, compreendendo o templo e seu lu­gar alto, porque Astartéia favoreceu seu de­voto: no ano 3 de seu reinado, no mês de no dia da Sepultura da deusa.

E que os anos durante os quais a está­tua da deusa permanecer no seu templo... sejam anos tão numerosos como aquelas estrelas."

O autor aborda a seguir a parte etrusca da inscrição. Sem poder traduzi-la — já que a língua etrusca continua inacessível — ele identifica o nome do doador, Tebarie Velianas, e o nome da deusa etrusca Uni, isto é, Juno. 

Recorda então uma passagem na obra de San­to Agostinho que afirma que Juno se chama Astartéia em púnico (língua púnica, Juno Astarti vocatur],

A seguir uma análise minuciosa das tabuinhas leva André Dupont-Sommer a desco­brir diversos aspetos comuns nos ritos, nas festas, nos calendários etruscos e púnicos. Observa igualmente que os cultos orientais em geral, e particularmente o culto fení­cio, exercem "estranha sedução" sobre os Etruscos.

Uma teologia maleável, aberta a todas as correntes estrangeiras

Que pensar de todas essas hipóteses? Será a religião etrusca uma religião grega, caldeia ou semítica?

Ela é, nos diz o grande historiador Albert Grenier, a síntese de numerosos elemen­tos provenientes tanto dos longínquos planal­tos anatólios como das colônias gregas bem próximas da Itália do Sul. A teologia etrusca é maleável, aberta a todas as correntes es­trangeiras. Grenier nos recorda também que o povo etrusco era um povo de marinheiros e comerciantes, em relações constantes e continuadas com as diversas civilizações que floresciam nos contornos mediterrâneos.

Numa sequência longa e brilhante, o autor coloca admiravelmente em cena esses viajantes infatigáveis, que eram os Etruscos, mostrando-os no ato de percorrer os mais di­versos países, de abordar aos mais distantes portos do Mediterrâneo, de permutar merca­dorias, matérias-primas e ideias religiosas.

"É nas religiões asiáticas" , conclui Albert GrenierR, "por volta do ano 1000 a.e.c., ou anteriores e essa data, que convém procu­rar os antecedentes da religião etrusca. Ora, precisamente, as descobertas recentes de documentos asiáticos do segundo milênio an­tes da nossa era, como as tabuinhas de Boghaz-Keuy e de Ras-Shamra, trazem e tra­rão ainda muitos ensinamentos sobre as reli­giões e os cultos da Ásia anterior."

O historiador Teopompo, "a pior das más línguas da Antiguidade"

Tal, em resumo, a discussão sobre as fontes da religião etrusca, que ainda suscita, já o dissemos, violentas polêmicas entre etruscólogos.

Mas em que consiste essa religião?

Quais as práticas que ela impunha a "um dos povos mais religiosos, mais doutos em religião, os professores de religião de Roma", segundo Georges Dumézil? De que mensagens divinas darão testemunho, em sua glacial solidão, as enigmáticas e admiráveis necrópoles etruscas cujos vestígios se der­ramam nas margens do Tibre e do Arno e nas maravilhosas paisagens florentinas?

Conforme já assinalamos, duas séries de documentos nos instruem sobre a teologia etrusca: de um lado, os documentos arqueo­lógicos (túmulos, templos, santuários e ins­crições funerárias de todo tipo), de outro os documentos literários legados pelos historia­dores gregos e romanos.

Alguns desses historiadores minimiza­ram a herança etrusca por orgulho nacional (Roma não deve nada, ou quase nada, à civili­zação etrusca: tal a afirmação repetida, sob uma forma ou outra, por grande número de historiadores da República Romana). Outros cederam ao gosto da difamação sistemática, como aquele historiador grego, Teopompo, cujo testemunho evocaremos mais adiante e que o professor austríaco da história das civilizações antigas, Paul Frischauer, consi­dera como uma "terrível comadre, a pior língua da Antiguidade".

Por outro lado, autores como Plínio, Sêneca, Tito Lívio, Aulo Gélio, Cícero — tentaram reconstituir a herança religiosa dos Etruscos, se bem que essa reconstituição seja às vezes tingida de certo preconceito em favor dos Etruscos.

O deus Tages: uma criança aquinhoada com a sabedoria de um velho

A particularidade mais digna de nota da religião etrusca é que, ao contrário das re­ligiões grega e latina, ela repousa sobre uma revelação. Dois profetas, um masculino, Ta­ges, e outro feminino, Vegóia, revelaram aos Etruscos o essencial de suas regras e ritos religiosos.

É a Cícero, autor do famoso De Divinatione, que devemos o relato do aparecimento de Tages sob o especto de uma criança, mas uma criança dotada da sabedoria de um ve­lho. Para de alguma forma autenticar seu relato, o célebre orador romano nos afirma que hauriu sua história de uma antiquíssima tradi­ção etrusca.

"Os Etruscos", escreve Cícero, "con­tam que, no território de Tarquínios, quando era lavrada a terra e foi escavado um sulco mais profundo que os outros, dele surgiu de repente um certo Tages, que falou àquele que trabalhava. Esse Tages, segundo os livros etruscos, tinha o especto de uma criança e a sabedoria de um velho. Como o camponês se assustasse ao vê-lo e soltasse um grande gri­to de surpresa, houve uma grande movimen­tação de turbas e, em pouco tempo, a Etrúria inteira estava reunida naquele lugar. Então Tages falou por muito tempo diante de grande número de ouvintes, a fim de que aprendes­sem e confiassem à escrita todas as suas pa­lavras. Seu discurso versava todo ele sobre o ensino da arte arúspice. . . "

As imprecações de Vegóia contra os deslocadores de limites

A segunda parte da revelação etrusca é realizada por Vegóia que vai ensinar a seu povo a arte de interpretar os relâmpagos, mas principalmente rituais precisos relativos à delimitação dos campos, dos territórios e das cidades. Ensinamentos práticos, portanto, muito semelhantes, a meu ver, aos preceitos do Alcorão em que o cuidado com a vida coti­diana do crente predomina largamente sobre as sutilezas teológicas. O Liber Vegoia, coletânea dos discursos da deusa Vegóia, infeliz­mente não chegou até nós. Somente restam alguns fragmentos relatados por Tarquitius Priscur, historiador romano de origem etrus­ca (primeiro século de nossa era).

Eis o fragmento mais importante — e também o mais revelador — da sensibilidade religiosa etrusca. Esse fragmento é intitu­lado Extrato do Livro de Vegóia e Arruns Velthumnus (Arruns era o rei de Chiusi, Clusium em latim):


"Saiba que o mar foi separado do céu. Ora, quando Júpiter reivindicou a terra de Etrúria, estabeleceu e ordenou que as planí­cies fossem medidas e os campos limitados. Conhecendo a avareza humana e as paixões que a terra provoca, quis que tudo fosse defi­nido por limites. Esses limites, quando alguém, um dia, movido pela avareza do século VIII que termina, desdenhar os bens que lhe foram concedidos e cobiçar os de outro, os homens, por manobras dolosas, os violarão, os atingirão, ou os deslocarão. Mas quem quer que os tenha atingido ou deslocado para estender suas propriedades e diminuir as de outro será, por esse crime, condenado pelos deuses. Se forem escravos, cairão em pior escravidão. Mas, se houver cumplicidade do dono, logo a casa deste será destruída e sua raça inteira perecerá. Aqueles que tiverem deslocado os limites serão atingidos pelas piores moléstias e pelos piores ferimentos e afligidos em seus membros debilitados. De­ pois a terra será seguidamente sacudida por tempestades e turbilhões que a farão oscilar. Volta e meia, as colheitas serão estragadas e derrubadas pela chuva e pelo granizo, seca­rão sob a canícula, serão destruídas pela man­gra. Grassarão as dissensões no seio do povo. Saiba que tais castigos ocorrerão quando tais crimes forem cometidos. Por isso, não aja de má fé, nem com língua enganosa. Ponha nos ensinamentos o seu coração."

Fundação de Roma segundo o ritual etrusco

Vegóia, a deusa tutelar da propriedade imobiliária, reveste, como não poderia deixar de ser, suma importância aos olhos desse po­vo composto em sua grande maioria de cam­poneses aferrados a seus linguados de terra. Mas é também um povo de construtores e urbanistas, "um povo", escreve o arquiteto-escritor Vitrúvio "que adquiriu uma arte apri­morada na construção das cidades, de que vemos belos exemplos no território da Etrúria". E justamente a fundação das cidades faz parte das regras e rituais consignados no Liber Vegoia.

Apoiando-se ao mesmo tempo no his­toriador Plutarco, no poeta Ovídio e no arqui­teto Vitrúvio, Albert Grenier nos descreve a fundação de Roma, fundação realizada, como sabemos hoje, por diversas fontes, segundo o rito etrusco herdado de Vegóia:

"Quando Rômulo", escreve Albert Gre­nier, "quis fundar Roma, começou, segundo Plutarco, por mandar vir da Etrúria especia­listas para ensinar-lhe os ritos e fórmulas apropriados". Não é uma questão de orienta­ção, se bem que se tenha acreditado reconhe­cer vestígios dela nos mais antigos alicerces do Forum; o fato hoje em dia é discutido. Plu­tarco menciona somente no local que foi mais tarde o Comitium, a escavação de uma fossa, o mundus, onde eram jogadas as primícias 'de gente tinha o cuidado de tornar a jogar para dentro todos os torrões de terra; era o sulco primordial delimitando o pomerium que nin­guém devia transpor. Por isso, nos trechos destinados às portas, o fundador tinha o cui­dado de levantar o arado para interromper o sulco.

"Na cidade etrusca, as portas devem ser ritualmente em número de três, no termi­nal das duas grandes vias axiais da cidade, sendo a extremidade norte do cardo fechada pela acrópole. Do alto dessa acrópole, onde se erguiam os templos", diz Vitrúvio referindo-se às inscrições etruscas, "os deuses deviam po­der abarcar com o olhar a maior parte da ci­dade e de suas muralhas."

O pepino verdolengo e a abóbora de lados redondos

Quais são esses deuses que devem po­der, com um único olhar, abranger toda a ci­dade? E qual o seu número? São três, como as portas de Roma: Tinia, Uni e Mernva-Menerva, equivalentes a Júpiter, Juno e Mi­nerva. Eles constituem a tríade suprema, a cúpula do panteão etrusco, depois dos profetas-fundadores Tages e Vegóia todas as coisas consideradas como boas', so­bre as quais cada um dos novos cidadãos vi­nha depositar um pouco da terra do país de onde fosse originário. A seguir a fossa era aterrada, ensina Ovídio, e, em cima, erguia-se o altar onde devia arder o fogo da futura ci­dade. Depois veio o traçado da muralha, com o arado de relha de bronze, com um touro e uma vaca atrelados. Atrás de Rômulo, sua Tinia ocupa lugar preponderante, seme­lhante ao do Júpiter romano do Zeus grego. A marca essencial do seu poder é o raio, ele­mento fundamental da arte arúspice etrusca e insígnia da vontade e do poder divino. Tinia possui três raios, ao passo que a maioria dos outros deuses só possuem um. Já Uni prolonga, em certo sen­tido, o papel de Vegóia, pois é considerada como a protetora das cidades. A transferência para Roma da estátua de Uni depois de Veies conquistada foi, segundo Tito Lívio, um acon­tecimento considerável. Desfrutando grande favor popular, Uni é alternativamente "a ninfa adorável", a "delícia do gênero etrusco", "a amante heroica" e outras metáforas desse quilate. Menerva, ou Minerva, é com frequência representada nos vasos ou nas paredes dos túmulos etruscos como uma deusa guer­reira armada da cabeça aos pés, acompanha­da de uma vitória que volita ao redor de sua cabeça.

Afora os deuses da tríade suprema, o mais importante é, sem dúvida, Vertumno. To­dos os documentos iconográficos o represen­tam imediatamente depois de um ou de outro dos três deuses supremos. Considerado como o principal deus da Etrúria (Deus Etruriae Princeps), ele parece, segundo alguns au­tores da latinidade, originário de Volsínios. Muitas vezes representado sob o especto de um jovem imberbe, musculoso e possante, preside às forças criadoras do mundo. É o deus da vegetação, do "pepino verdolengo e da abóbora de lados redondos". De resto, é assim que se apresenta a si próprio na céle­bre elegia do poeta latino Propércio:

Tuseus ego, et Tuseis orior.


"Sou Toscano e vindo da Toscana... Talvez meu nome provenha do fato de o ano, que gira, me haver ofertado suas primícias. Creia porém em um deus que lhe fala de si mesmo: minha natureza se acomoda a todas as aparências; torna-me naquela que te agra­dar, eu serei belo. . . Por que não acrescentar aquele que é meu mais belo título de glória? É em minhas mãos que estão os maravilhosos produtos de nossos jardins: o pepino verdo­lengo, a abóbora de lados redondos... e ne­nhuma flor se abre nos prados que não venha decorar minha fronte e nela fenecer. . . "

Uma Etrúria de inúmeros cultos locais

Não nos parece interessante alinhar uma nomenclatura exaustiva de todos os deu­ses da Etrúria. Seu número, suas funções, suas representações gráficas e até seus no­mes mudam ao sabor das cidades. A Etrúria antiga — já o dissemos — não constitui uma nação, na aceção atual do termo. É uma con­ federação de 12 cidades — cifra aliás contes­tada muitas vezes pelos historiadores. Cida­des ciosas, cada uma delas, de sua indepen­dência, de suas instituições e, decerto, de seus deuses.

Vertumne possui inúmeros templos em Volsínios, mas seu culto é quase inexistente em Populônia que, em contrapartida, reserva a Fufluns, deus do vinho e da orgia báquica, os mais belos santuários. Maris, o deus da guerra e da agricultura, é honrado em Vulci e ignorado em Veies. Turms é venerado em Arezzo mas seu nome parece desconhecido em Tarquínios, sem embargo a "capital", se podemos chamá-la assim, da religião etrusca. Sethlans, o deus do fogo e da forja subterrâ­nea, é o deus protetor de Perúsia: os vestígios de um grande templo erigido em seu nome ainda se erguem nas cercanias da cidade. Mas não encontramos traço desse deus nas cida­des como Chiusi, Vetulônia, Marzabotto, onde os deuses Aplu, isto é, Apooo, e Hercle, isto é, Hércules, desfrutam favor considerável.

Há também traços de numerosas divin­dades femininas como Tiv, deusa da lua; Artumes (Ártemis) que encontramos amiúde nos espelhos, em companhia de seu irmão Apolo; Turan, deusa-mãe, protetora da mulher e do amor, dos animais, da vida e da morte. Nas pinturas, Turan se nos apresenta como uma moça muitas vezes nua ou vestida só até a cintura. Será Hera? Será Afrodite? Será Perséfone? Ou uma amálgama de todas essas divindades, das quais toma emprestado este ou aquele traço?

Vestígios enigmáticos que não cessam de desafiar os arqueólogos

Como em muito outros domínios da etruscologia, sabemos somente pouca coisa acerca da atitude metafísica desse povo. Bas­ta, é certo, percorrer hoje a Toscana e con­templar essas vastas necrópoles, suas inúme­ras sepulturas das mais variadas formas, para nos darmos conta de que o Etrusco era um homem preocupado profundamente com o pro­blema da morte. O prodigioso luxo funerário encontrado em todos os túmulos lá está co­mo uma testemunha tácita, ignoramos, con­tudo, a forma dessa preocupação assim como ignoramos em definitivo a significação preci­sa desse luxo.

Acaso essas pinturas suntuosas, esses vasos, essas estátuas, esses objetos familia­res que povoam as profundezas das necrópoles provam que os Etruscos previam uma vida além da morte, ou trata-se de outra coisa? Também neste caso, o mutismo impenetrável da língua toscana nos coloca a braços com vestígios em quantidade considerável, mas cujo significado final nos escapa totalmente.

"Os documentos mais significativos", escreve Âlbert Grenier, "são as pinturas que ornamentam as paredes das câmaras funerá­rias. Mas sua interpretação suscita bom nú­mero de problemas. Eis, por exemplo, desde a época arcaica (séculos VI e V), cenas de caça ou de voltas da caça. Que relação têm elas com o além-túmulo? Serão acaso expres­sões de esperança para a outra vida ou lem­branças caras ao extinto, ou ainda mais sim­plesmente, uma decoração para o túmulo aná­loga à das mais ricas moradias dos vivos? Os monstros terrestres ou marinhos que ali se veem representados povoam os Infernos? Ou não passam de motivos decorativos empres­tados da arte helénica? As cenas de banque­tes, as danças, a música, os jogos de todo tipo, passam-se nos Infernos ou na Terra? Se­rão acaso algo além da representação das ce­rimônias que acompanharam os funerais? Pro­longarão, quem sabe, enquanto durarem as pinturas, os benefícios e graças para o fale­cido?... Mais tarde, a partir do século IV, as cenas pintadas nas paredes dos túmulos se situam nos Infernos, mas o significado nem sempre é claro..."

Como bem podemos ver, essa abundân­cia de documentos não exclui a incerteza. É geralmente admitido que os Etruscos, que são fundamentalmente inumadores, criam a prin­cípio que seus mortos continuavam a viver nas próprias tumbas, o que explica o fausto de tais monumentos — alguns dos quais são verdadeiras obras-primas de arquitetura — como as admiráveis necrópoles de Volterra, manifestamente destinadas à nata aristocrá­tica da cidade e que inspiraram algumas das mais notáveis páginas de Gabriele D'Annun­zio. Evidentemente o vibrante autor do Martirio de São Sebastião não é um arqueólogo, aquele cientista que sabe ler a linguagem mu­da das pedras. Sua sensibilidade de poeta, no entanto, sabe recriar, para nós, aquela atmos­fera de tragédia e tristeza que ainda impregna as ruínas funerárias da Toscana. Ruínas, como sugere D'Annunzio, que provam à saciedade que os Etruscos acreditavam num além e pensavam que a morte não é o término definitivo da vida, mas sim uma outra forma de vida.

Entre as mais célebres páginas do livro de D'Annunzio sobre a Etrúria, A Cidade Morta (Volterra), citemos aquela em que dois jovens heróis, Paolo e Vana, visitam o museu da ci­dade procurando ali a "expressão eterna de suas almas":


" ...Com olhos muito atentos, desco­briam em toda parte indícios do próprio des­tino, imagens manifestas de seus mais secre­tos pensamentos...

. — Que enorme silêncio em quartos tão pequenos — dizia o irmão. — Quem parte não chora, quem fica não chora.

Olham-se fixamente, de mãos dadas, dão-se um adeus sem palavras, perto do limi­te sepulcral. E a testemunha alada outra não é senão a divina Tristeza. Pois a Tristeza é a musa dos Etruscos. É ela quem acompanha, nos caminhos do exílio e do inferno, um enorme Etrusco colorido pela bílis negra... Os Manes, a pé, a cavalo, vêm adiante dos via­jantes um carro coberto, em liteira, em qua­driga. Os corcéis atrelados encurvam o pes­coço, de modo que suas crinas tocam o solo como a do alazão de Aquiles no presságio fatal.. .

— Não está aqui a minha imagem? — dizia o irmão demorando-se. — Entre todas as viagens aos infernos, é a equestre que me agrada.

Demoravam-se perto da urna, imóveis em seu devaneio, como se um mesmo gênio os dominasse. E ao redor, estendidas sobre tampas quadrangulares, apoiadas sobre o co­tovelo esquerdo, as figuras obesas dos defun­tos de grossos lábios semiabertos estavam em paz, segurando na mão direita a patera, o leque, as tabuinhas. Mas todas aquelas mãos esquerdas pousadas sobre os coxins em ati­tude imutável, grosseiramente talhadas, algu­mas enormes, outras roídas, outras mutiladas, davam a todos os dois uma vaga angústia como se eles as sentissem pesar sobre seus corações."