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Lilith

Iniciado por Ziva75, Agosto 22, 2016, 09:07:50

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Ziva75

Um demônio noturno, a paixão da noite, anjo exterminador das parturientes, assassina de recém-nascidos, sedutora dos adormecidos, uma prostituta voluntariosa ou, para um juízo mais são, uma vontade poderosa que não se dobra diante da pressão masculina e prefere a transgressão à vassalagem. Lilith é ímpeto sexual, mulher emancipada e em fuga, sombra maligna por se haver considerado em pé de igualdade com os homens; é igualmente a mais remota concepção feminina, que transmigrou para o judaísmo pósbíblico a partir da mitologia da antiga Suméria como a primeira mulher de Adão, como ele criada do pó e insuflada com o sopro divino para fundar nossa espécie sem que houvesse aparente superioridade do homem sobre a mulher, até enfrentar no leito o desafio de sua submissão, o que provocou uma retificação mitológica por meio da suposta debilidade de Eva. Sabemos pouco, muito pouco do que poderia ser considerado o antecedente mítico de um feminismo condenado desde o princípio, demonizado por pretender certa satisfação sexual e marcado por idêntico desprezo na Babilônia, nas tábuas da lei dos hebreus ou na tradição legendária que alcança a Cabala e o Hermetismo da Idade Média. Alguns descrevem Lilith como um ser alado e de cabelos longos, bastante semelhante à representação dos querubins; outros a apresentam com caninos ferozes e lhe dão por marido o demônio Sama'el. Chamam-na Rainha do Mundo Inferior por suas aspirações pecaminosas, ou esvaziam seus atos reivindicatórios considerando-a instigadora dos amores ilícitos. O cabalista do século XIII Yitshaq ha
Cohen e seus sucessores separam-na em duas: Lilith a Velha, esposa de Sama'el, e a Jovem Lilith, unida a Asmodeos, outro dos principais demônios, também conhecido como Ashmed'ai; tampouco faltam associações com os vampiros que se alimentam de sangue para reviver, no reino das trevas, o seu poderio. Seja qual for a origem dessa imagem, o resultado é o mesmo em quase todas as culturas que reconhecem nas mulheres uma potência sexual de periculosidade inequívoca, sobretudo no momento em que as tribos transitaram para o estabelecimento de um patriarcado que, para se legitimar, tinha de desqualificar a autoridade feminina, considerando-a, no mínimo, a perturbadora do leito conjugal. Lilith ensina que, antes mesmo que Eva reconhecesse a beleza do corpo, a mulher já estava preparada para assumir seu erotismo com o mesmo vigor com que impunha sua presença em um mundo totalmente submetido aos ditames divinos. Tal mundo era assinalado pelo poder de criar, característico das mulheres. Disso decorre que, ao serem estabelecidas as primeiras leis humanas, à imagem e semelhança de Deus, Lilith tinha de ser censurada a fim de ceder seu simbolismo fundador a uma Eva nascida da costela de Adão, inferior por sua debilidade, ainda que igualmente responsável pela perda da inocência humana. Em geral, as versões coincidem com o registrado no século XVII no Alfabeto de Ben Sira, cujos comentários bíblicos aludem à disputa pela igualdade entre Lilith e Adão, que culminaria com a expulsão do Jardim do Éden evocada no livro do Gênesis. Ao criar Adão, Deus também extraiu a mulher do barro para que o homem não ficasse solitário sobre a Terra; e a chamou Lilith, que, na língua suméria, corresponde a "alento" [o sopro divino]. Porém, assim que os dois se juntaram, começaram a discutir, pois ela se opunha a permanecer por baixo do homem durante o ato da cópula. Aferrada à sua convicção de igualdade, Lilith exigiu de Adão que modificasse sua postura para que ela também desfrutasse do prazer do amor. Indignado, Adão se negou, alegando que era próprio do homem deitar-se sobre a mulher e
afirmando que não acederia a seus desejos. Ferida em seu orgulho, Lilith pronunciou o inefável nome de Deus e, enfurecida pela atitude do marido, abandonou-o para sempre. "Nós dois somos iguais" - disse-lhe Lilith antes de iniciar sua carreira endemoninhada -, "uma vez que saímos do mesmo barro." Não obteve justiça nem foi atendida por Adão em suas necessidades, motivo pelo qual dessa disputa se originou a primeira cisão do laço matrimonial e as conseqüentes vinganças mútuas que acabaram por produzir crimes de sangue. Adão queixou-se a Deus e, para satisfazer as demandas de seu servo, a divindade enviou três anjos à Terra, para trazer Lilith de volta ao lar, com a ameaça de que, caso não concordasse, mandaria matar cem de seus filhos a cada dia. Os mensageiros Sennoi, Sansanui e Samangaluf saíram em sua busca pelas planícies, montanhas e rios até que acabaram por encontrá-la no Mar Vermelho. Ali imploraram a Lilith que concordasse em regressar, que se submetesse aos caprichos de Adão e, com sua obediência, evitasse a cólera de Seu Criador. Como ela persistisse em se opor, os anjos advertiram-na de que recairia de forma inevitável o castigo supremo sobre ela e sobre seus filhos. Humilhada no mais profundo de seu ser, Lilith, ou a primeira Eva - como a chamariam indistintamente os intérpretes da Bíblia -, jurou vingança fazendo o mesmo a todos os recém-nascidos que encontrasse em sua passagem. Se fossem meninos, podia degolá-los desde o momento de seu nascimento até o oitavo dia, contingência coincidente com a data determinada para a cerimônia da circuncisão. No que se refere às meninas, sua ameaça de morte se prolongava até o vigésimo dia após seu nascimento, o que sugere uma alusão a algum ritual semelhante ou equivalente às múltiplas formas de mutilação feminina ainda praticadas nas comunidades muçulmanas até hoje. Seu juramento, contudo, deixou em aberto uma esperança de salvação, pois prometeu não destruir as criaturas que portassem um amuleto com os nomes dos três anjos, cuja proteção se estenderia também às mulheres grávidas durante o parto.
A idéia de uma mulher boa e outra má, encarnadas por Eva e Lilith, permaneceu até nossos dias, embora recaia também sobre Eva a maldição atribuída a seu pecado de orgulho. E é este orgulho que congrega todas as superstições vinculadas à sedução feminina e que, através dos mitos, se manifesta a partir do simples desejo de igualdade até os encantamentos da feiticeira que persuade a vontade dos homens por meio de procedimentos ilícitos. A imagem do demônio noturno que desliza para o leito daquele que dorme incauto é, entretanto, a preferida das religiões modernas. O exemplo de uma instigadora inclinada para o mal é o que melhor expressa os preconceitos que predominaram em relação à função perturbadora das mulheres, eternas responsáveis pelo pecado original que levou os homens a perderem a sua pureza, a se envergonharem do próprio corpo e a atentar contra os ditames divinos ao aspirarem à imortalidade. Refundida com sua pretensão de igualdade, diz-se que Lilith habita as profundezas dos oceanos desde tempos imemoriais, e que ali é mantida pelos guardiões supremos por meio de reiteradas censuras, a fim de que não volte a perturbar a vida dos homens e de outras mulheres. Todavia, sua sombra ressurge de tempos em tempos, quando o clamor pela reciprocidade se infiltra na discussão de direitos e de liberdades e cada vez que uma mulher descobre o significado mais recôndito de sua criatividade. Lilith, porém, não é somente a abandonada, sem leito próprio, que viaja pelo mundo em busca de vingança com as mãos tingidas de sangue jovem; também representa a mulher suplantada por outra que lhe é inferior e submissa, pela simples costela do homem dominador, pela esposa que renuncia a seu próprio erotismo em troca da segurança conjugal. A mão de Lilith é percebida nas brigas matrimoniais, nos desejos insatisfeitos, na separação dos casais, na emancipação frustrada e nos castigos que recaem sobre as mulheres que desafiam as normas sociais. Eterna inconformada, sua discrepância essencial a vincula ao
demônio, à inadaptação e ao rancor. É por isso que se encontra ali, atirada ao abismo, desaparecida nas profundezas do oceano, atormentada por seus desejos; firme, porém, em sua vontade superior e sempre à margem de regras que não aceita nem consegue modificar. Lilith segue carregando a marca de sua perversão libidinosa, condenada a gerar criaturas demoníacas, seres fantásticos, noturnos como são ela e seus sonhos destratados. Sempre renovada e infatigável, Lilith se aloja em cada mulher que imagina ser possível a verdadeira equidade, em cada mulher que perturba os sonhos e devaneios dos homens, naquela que menciona o inefável nome de Deus não para acatar seus desígnios, mas para salientar o alento transformador de sua própria criatividade. Lilith é, por tudo isso, a paixão da noite, a criatura mais temida e o anjo que vaga com a esperança de restaurar a ordem transtornada, apesar de toda dor e de todo esquecimento.

Fonte: Mulheres, Mitos e Deusas
"Treina-te para deixares ir tudo o que mais temes perder."