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A Civilização Etrusca (parte-IV)

Iniciado por Hera, Setembro 17, 2016, 11:12:56

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Hera

Os prodígios: advertências dirigidas aos homens pelos deuses

Os magos e os arúspices etruscos não se empenham somente em desvendar o sen­tido oculto das entranhas ou dos fenômenos celestes, precisam também interpretar os pro­dígios: é o terceiro compartimento da disci­plina etrusca. Assim como os trovões, o raio ou o palpitar das entranhas, o prodígio possui, na vida religiosa dos Etruscos, um valor essen­cial. O aparecimento de um prodígio quebra, por assim dizer, o equilíbrio natural, tão impor­tante, como vimos, na sensibilidade religiosa etrusca. Rompendo brutalmente o curso nor­mal da vida dos indivíduos e mesmo da comu­nidade, constitui, por isso mesmo, uma adver­tência enviada pelos deuses aos mortais. Um prodígio tanto pode ser o arauto de um acontecimento favorável como de um desfavorável. "Um prodígio" , observa Raymond Bloch, "é sempre a irrupção do sagrado no profa­no, testemunhando tal ou qual modificação nas relações entre deuses e homens: e estes po­dem tirar importantes conclusões para sua própria vida. Sinal privilegiado oferecido à observação humana, o prodígio entra totalmen­te no mundo da adivinhação, atividade religio­sa por excelência dos Etruscos, que tantos documentos diversos da literatura, da epigra­fia e da arqueologia contribuem para nos fazer conhecer."


O peso das misteriosas forças do destino

Confrontando, sucessivamente, a atitu­de específica dos Gregos, dos Etruscos e dos Romanos, diante dos prodígios, Raymond Bloch constata que essa arte é muito difundi­da, mas em graus diversos, entre todos os povos da Antiguidade. Uma arte muito com­plexa que consiste em deduzir de tais sinais divinos indicações precisas concernentes ao passado, ao presente e ao futuro.

O autor frisa o quanto o povo grego, povo essencialmente racionalista, concede pouco espaço a essas manifestações estra­nhas à ordem natural das coisas. "Inversa­mente", acrescenta, "os Etruscos, que sentem constantemente acima deles o peso das for­ças misteriosas do destino, consagram-lhe toda atenção e sua ciência dos ritos. Para os Romanos, ver-se-á que foram bastante supers­ticiosos para ver constantemente, em torno de si, surgirem prodígios; mas também bastante pragmáticos para organizar solidamente os ciclos rituais destinados a confirmar as pro­messas e a afastar as ameaças. Talvez nunca os povos antigos tenham manifestado tão bem as características de sua religião, e de seu gênio, como em face do prodígio."

"Enquanto não se esgotarem as águas do lago de Alba, ninguém verá o Romano senhor de Veies"

Quase nada nos resta hoje dos textos etruscos que ensinam a arte de "decodificar", se podemos dizer assim, os prodígios, já que tais prodígios constituem a " linguagem cifra­da" que os deuses imortais estendem aos homens. Todos esses textos desapareceram no naufrágio geral da literatura etrusca. Entre­tanto, fragmentos, tênues, é verdade, e espar­sos, subsistem nas traduções e citações de autores latinos e gregos que nos informam, de maneira bastante precisa, sobre as práti­cas dos magos toscanos e os princípios que eles punham em ação para sondar, através dos prodígios, as intenções divinas, antes de conjurá-las por cerimônias expiatórias apropriadas e capazes de aplacar a cólera dos deu­ses. Encontramos aí a característica funda­mental da religiosidade etrusca: acalmando os furores celestes, os ritos de expiação outra meta não têm senão restabelecer a ordem na­tural rompida pelo surgimento do prodígio.

Um dos exemplos mais citados para ilustrar o papel considerável representado pe­los prodígios entre os Etruscos e os Romanos diz respeito ao lago de Alba. A história, narra­da com vagar por Tito Lívio, se passa na oca­sião do sítio da cidade etrusca de Veies pelas tropas romanas, no início do século IV de nos­sa era. Dura o sítio há vários meses e os si­tiantes romanos começam a perder o ânimo. Subitamente, relata o historiador romano, " um lago, na floresta de Alba, encheu-se erguen­do-se a uma altura extraordinária, sem que a água caída do céu, ou qualquer outra causa natural, pudesse explicar a maravilha. Para saber o que pressagiavam os deuses com aquele prodígio, foram enviados deputados para consultar o oráculo de Delfos; mas o des­tino havia trazido para mais perto do acampamento um outro intérprete: um velhinho de Veies misturou um dia aos gracejos trocados entre sentinelas romanas e guardas etruscos algumas palavras que ele cantarolava em tom profético: 'Antes que se esgotem as águas do lago de Alba, ninguém verá o Romano ser dono de Veies'."

Rapto de um adivinho etrusco

A frase, lançada como que por acaso, e recebida a princípio com indiferença, logo correu de boca em boca. Finalmente, um sol­dado dos postos romanos pergunta a um dos guardas da cidade que estavam mais próximos (esses diálogos familiares não eram nada ra­ros depois de um longo período de cerco), quem era o autor daquelas obscuras palavras sobre o lago de Alba. Fica sabendo que é um arúspice e, na religiosa credulidade de sua alma, supõe um prodígio cuja expiação inte­ressa somente a ele; gostaria, se fosse pos­sível, de aconselhar-se com o adivinho, que por isso atrai a uma entrevista. Caminham os dois para um local apartado, sem armas e sem desconfiança: então o jovem Romano, mais vigoroso, se lança sobre o débil velhinho, rapta-o na frente de todo mundo, a despeito das ameaças dos Etruscos, transporta-o ao acampamento e o apresenta ao general, que o envia a Roma junto ao Senado. Lá, pergun­tam-lhe o significado de sua predição sobre o lago de Alba. Ele responde que "sem dúvida os deuses foram tomados de ódio pelo povo de Veies desde o dia em que lhe deram o pen­samento de revelar a ruína que os fados reser­vam à sua pátria. Cedia então ao divino espí­rito que o inspirava; não pode, portanto, retirar as palavras que havia pronunciado; e talvez não houvesse menor crime em calar o que os deuses imortais querem divulgar do que em trazer à luz seus segredos. Assim, os livros do destino e a ciência etrusca ensinam que no dia em que subirem as águas do Alba, o esgo­tamento do lago, segundo o rito prescrito, assegura aos Romanos a vitória sobre Veies; de outro modo, os deuses não abandonarão as muralhas de Veies". A seguir explica como se poderia obter o escoamento regular das águas. " Romano, guarda-te de reter a água do Alba no lago; guarda-te de deixá-la seguir seu curso e rolar para o mar. Que ela se escoe em teus campos, os banhe, divida-se e perca-se em riachos. Quanto a ti, ataca ardorosamente as muralhas inimigas; lembra-te de que os fados, que te são aqui revelados, asseguram-te o fim desse longo sítio e a ruína dessa cidade. Depois da guerra, vencedor, leva um rico presente aos templos de Delfos, e que as práti­cas religiosas de teu país, hoje descuradas, sejam por ti renovadas nas formas solenes."

Os Romanos vão aplicar ao pé da letra as prescrições do adivinho etrusco. Cavam di­versos canais. Em poucos dias, o lago de Alba se esvazia, expandindo-se por toda parte nos campos vizinhos. Pouco tempo depois, o cerco termina e Veies cai em mãos dos Romanos em 396 a.e.c.

Roncos subterrâneos: um fenômeno temível e incompreendido

Um outro texto, de Cícero desta vez, nos mostra a forma e o conteúdo de uma res­posta dada ao Senado pelos arúspices etruscos em 56 a.e.c. Nesse ano, violento ronco subterrâneo se fez ouvir em Roma, no ager latiniensis lançando a inquietação entre a po­pulação da cidade.

A princípio, os adivinhos, pelo menos a dar crédito a Cícero, contentam-se em anotar com precisão o prodígio sobre o qual foram chamados a se pronunciarem: "Visto que, no ager latiniensis, ouviu-se sob a terra um estrépito acompanhado de um frêmito... " É a primeira fase da operação: simples constata­ção do fenômeno. Numa fase seguinte, os arúspices, depois de sábias operações mági­cas, conseguem encontrar os nomes dos deu­ses que manifestaram sua cólera por meio desse ronco: assim começa a complexa exe­gese do prodígio. Essa exegese é a parte cen­tral da consulta aos arúspices, pois traz à ame­drontada cidade a explicação de um fenômeno a um tempo temível e incompreendido. "As reclamações", precisam portanto os arúspices etruscos, provavelmente com o tom sepulcral apropriados às circunstâncias, "vêm de Júpi­ter, Saturno, Netuno, Tellus..." Terríveis ameaças pesam sobre a cidade.

Por que esses deuses estão encoleriza­dos? A resposta dos adivinhos a essa ques­tão proposta pelo Senado Romano é a terceira fase da consulta. Com notável minúcia, os ma­gos etruscos enumeram as múltiplas razões que provocaram a ira dos deuses: "Os jogos foram celebrados com excessiva negligência e conspurcados. Lugares sagrados e religio­sos foram desvirtuados para utilização profa­na. Oradores foram mortos, ofendendo as leis humanas e divinas. A palavra dada e o jura­mento foram esquecidos. Sacrifícios antigos e secretos foram feitos com demasiada displi­cência e conspurcados."

Esse terrível libelo lança o pavor no Senado: tantos crimes, tantos sacrilégios e tantas profanações não podem permanecer impunes e os deuses sem dúvida vão castigar a cidade culpada dessas graves ofensas à or­dem divina! Os senadores então interrogam os adivinhos etruscos: que perigos ameaçam os cidadãos de Roma? Aqui também — e é esta a quarta fase da operação — o diagnóstico é temível. Os arúspices não fazem o menor es­forço para poupar os poderosos senadores romanos. Porta-vozes da vontade divina, sentem-se na obrigação de revelar claramente os terríveis perigos que pesam sobre Roma. É preciso temer, dizem pois, "que pela discór­dia e dissensão dos optimates, mortes e peri­gos sejam tramados contra os pais e os che­fes, que estes sejam privados de socorro, seguindo-se o agrupamento das províncias sob uma única autoridade, a expulsão do exército, seguindo-se um enfraquecimento final. É de recear também que a coisa pública seja lesada por intrigas secretas, que homens corruptos e desapossados sejam guindados a altos cargos, enfim, que a forma do governo seja alterada".

Os arúspices etruscos, defensores da ordem estabelecida

O texto de Cícero infelizmente não diz nada sobre a quinta e última fase dessa con­sulta, isto é, os rituais de expiação que os arúspices etruscos provavelmente não teriam deixado de prescrever aos senadores roma­nos para conjurar tantos perigos.

Apesar dessa lacuna, o texto que aca­bamos de citar é altamente revelador. Põe em foco a habilidade dos magos etruscos no es­tudo dos prodígios e dá uma idéia muito clara do desenrolar desses cerimoniais dos arúspices que durarão praticamente até o fim do im­pério romano. Revela também — e é esse, em nosso entender, o ensinamento realmente im­portante do texto — a relevância do papel so­cial e político desempenhado pelos adivinhos etruscos na sociedade romana. Na realidade, a Etrúria, vencida, sobreviveu e impôs a Roma seus rituais, suas crenças e superstições, graças a seus arúspices, seus adivinhos, seus magos e seus sacerdotes. " É a vitória dos ven­cidos", na judiciosa expressão de Henrique Harrel-Courtès.

Qual exatamente o papel desse clero etrusco? É, explica Raymond Bloch, essencial­mente um papel estabilizador que consiste em transportar para o domínio político os sábios preceitos da religião. Do mesmo modo que o aparecimento de um prodígio quebra a harmo­nia natural do universo, assim também as agi­tações sociais, as revoltas rompem o equilí­brio da sociedade. E é preciso, a qualquer pre­ço lutar contra todas essas agitações e todos esses atentados à ordem divina e humana.

"A atitude retintamente aristocrática dos arúspices", esclarece Raymond Bloch, " patenteia-se na advertência dos perigos que pairam sobre o Estado e a classe senatorial.

Multiplicam assim as medidas preventivas contra toda tentativa que vise a subverter a ordem estabelecida ( ... ) Todas as suas res­postas refletem uma tendência conservadora que exprime fielmente sua posição constan­te ( ... ) Os arúspices são mantenedores da ordem estabelecida, paladinos da classe oligárquica ( ... ) E a atitude deles não se modi­fica em toda a duração quase inverossímil de seu ministério, desde os primórdios da Etrúria até o fim do Império Romano."

Manter a qualquer preço o colégio dos arúspices

Assim, pois, longe de afundar no nau­frágio político da Etrúria, a disciplina etrusca na realidade sobreviveu e prosperou no trans­curso da história romana. Em seu livro já men­cionado, De Divinatione, Cícero relata um senatus-consulto datando do século II que con­vida cada uma das 12 cidades etruscas a en­viar ao Estado romano seis jovens de nobre origem para seguir os estudos religiosos e perpetuar assim a disciplina etrusca. Esse senatus-consulto exorta vivamente os lucumons etruscos a manter intactas suas tradi­ções religiosas a fim de que, nos diz Cícero, "arte tão aprimorada não se perca para sempre."

Além do senatus-consulto relatado por Cícero, um importante documento atesta o vi­vo interesse por parte de Roma pelas práticas dos arúspices etruscos; trata-se do discurso pronunciado em 47 d.e.c. pelo Imperador Cláudio perante o Senado. Apaixonado pela histó­ria gloriosa da Etrúria — à qual consagrou, ao que se diz, 20 volumes, hoje perdidos — o Im­perador Cláudio exprime diante dos senado­res sua vontade de lutar contra a invasão das superstições estrangeiras, superstições que ameaçam suplantar "a mais antiga ciência da Etrúria" em proveito do judaísmo ou dos ritos egípcios. Por isso o imperador pressiona os senadores para que salvaguardem o colégio dos arúspices, que é composto de 40 adivi­nhos etruscos provenientes das diferentes ci­dades etruscas.


Eis o texto desse discurso relatado por Tácito e citado por A. Bouché-Leclercq em sua admirável História da Adivinhação:


"Era preciso não deixar perecer, por negligência, a mais antiga ciência da Itália: muitas vezes, em circunstâncias críticas para o Estado, os arúspices tinham sido chamados e seus conselhos haviam restabelecido as ce­rimônias sagradas e assegurado para o futuro uma observância mais estrita dos ritos; os grandes da Etrúria, tanto por iniciativa própria como por instigação do Senado romano, ha­viam mantido e propagado essa ciência nas famílias; nos dias que corriam, ela era descu­rada, devido ao geral descaso pelas artes úteis e à progressiva invasão das superstições estrangeiras.

Momentaneamente, é cer­to, havia prosperidade geral; a benevolência dos deuses, no entanto, requeria em retorno que não se deixasse perder, por causa dos tempos venturosos, as cerimônias rituais ob­servadas nas circunstâncias críticas." Convo­cou-se então um senatus-consulto confiando aos dignitários a tarefa de determinar o que convinha manter e consolidar na ordem dos arúspices.

"A plebe se entregava desavergonhadamente a uma desenfreada licenciosidade"

A. Bouché-Leclercq assinala que a exor­tação do Imperador Cláudio, ao falar nas "su­perstições estrangeiras" , tinha em mira não somente os ritos egípcios e o judaísmo, mas sobretudo o culto grego de Dioniso.

Um arqueólogo vienense, Paul Frischauer, dedicou longo estudo precisamen­te à introdução desses cultos altamente licen­ciosos, tanto em Roma como na Etrúria, du­rante o século I a.e.c. Uma época confusa em que já se debatia sobre o divórcio, a igualdade dos homens e mulheres e a liberdade sexual! Debates, como se vê, muito próximo dos que podemos ler hoje em dia em nosso jornal:


"As leis relativas ao divórcio", escreve Paul Frischauer, " não favoreciam mais exclu­sivamente o marido. Cada vez eram celebra­dos menos casamentos indissolúveis ( ... ) Nos palácios dos patrícios, adornados de obras gregas refinadas, fazia-se questão es­trita de que fossem respeitadas as formalidades, tanto mais que a plebe se entregava desavergonhadamente a uma licenciosidade de­senfreada. Os aristocratas desejavam distin­guir-se exteriormente das massas libertinas. O que se passava entre quatro muros não se propalava senão lentamente através dos me­xericos dos amorosos desbancados que, para se vingar, recorriam à pena. Mas os excessos dos homens e mulheres do povo ( ... ) eram tema favorito das discussões senatoriais."

"Ninguém deve celebrar festas em segredo"

Contra esses desregramentos sexuais e essas orgias, verdadeiros atentados ao equi­líbrio natural, segundo os princípios da disci­plina etrusca, o Senado multiplicava leis e prometia os piores castigos aos libertinos:


"Nenhum cidadão romano deve misturar-se aos adeptos de Baco. Nenhum homem deve tornar-se seu sacerdote. Nem homem nem mulher devem dirigi-los, não devem ter caixa comum nem empregado, não devem no­mear homem ou mulher na qualidade de em­pregado... Ninguém deve celebrar festas em segredo ( ... ) Nenhuma festa deve ser cele­brada em comum por mais de cinco pessoas. Entre elas não deve haver mais de dois ho­mens e três mulheres (...) As Bacanais (. . .) serão abolidas num prazo de 10 dias após a comunicação desta ordenação."

"Um adivinho de condição inferior, mestre dos cultos noturnos e clandestinos"

Mas nem as leis do Senado, nem a ameaça dos castigos impediram os libertinos romanos e etruscos de continuar a entregar-se às piores intemperanças, como atesta o historiador romano Tito Lívio, afirmando que esses rituais báquicos foram introduzidos de início na Etrúria, depois em Roma por um "Grego de origem desconhecida":


" Era", escreve ele, " um homem nada versado nas diversas artes que esse povo cul­to entre os cultos introduziu entre nós para cultivar o corpo e o espírito, mas simples sa­cerdote e adivinho de condição inferior, não daqueles que praticam um culto público e pro­clamam aos olhos de todos sua fé e sua dou­trina, ganhando os espíritos para seus erros; não, era um mestre de cultos noturnos e clan­destinos. Tratava-se de uma iniciação que ini­cialmente não foi concedida senão a um redu­zido número; depois ela se difundiu entre os homens e as mulheres. Aos rituais do ofício divino ela mesclava o atrativo das bebedices e comezainas, a fim de conquistar adeptos mais numerosos. Quando o vinho aquecia to­dos os corações, quando a noite e a promiscuidade entre os homens e mulheres, entre adultos e adolescentes apagava todo senti­mento de pudor, praticava-se toda sorte de desregramentos. A cada um se ofereciam os prazeres a que seus pendores o incitavam... Por isso tantos falsos testemunhos, falsifica­ções de sinetes, de testamentos e denúncias, e depois envenenamentos e assassinatos até no seio das famílias, sem que se pudesse en­contrar, para dar-lhes uma sepultura digna, os cadáveres das vítimas. Em sua impudência os criminosos empregavam, mais vezes do que a astúcia, a violência. Mas não era nota­da, porque o alarido e o barulho dos tambo­rins e dos címbalos abafavam os pedidos de socorro dos seres humanos violentados ou assassinados. Esse funesto mal, como epide­mia contagiosa, veio da Etrúria e invadiu Ro­ma. No começo, porém, permaneceu oculto, pelo fato de a extensão da cidade oferecer mais espaço e possibilidade a essas malfei­torias."


Orgias sangrentas no Tibre


A seguir Tito Lívio relata a narrativa de um jovem que escapou por pouco de ser mor­to no curso dessas festas báquicas e conse­guiu safar-se por milagre a seus agressores.


" ...Os homens profetizavam, como que atacados de loucura, com tremores por to­do o corpo; as mulheres casadas, vestidas de bacantes e com as cabeleiras desatadas, pre­cipitavam-se para o Tibre com tochas acesas, que mergulhavam na água e retiravam, ainda acesas, pois eram revestidas de enxofre e cal; amarravam-se homens a carretilhas e, sob o olhar dos assistentes, eles eram projetados em grutas ocultas; a seguir, pretendia-se que tinham sido arrebatados pelos deuses; na rea­lidade, eram adeptos que se tinham negado a ligar-se por juramento, a participar de qual­quer infâmia ou sofrer qualquer violência. Ha­via considerável número deles e entre eles havia também alguns homens e mulheres de qualidade."


Os mexericos de Teopompo

Esses escandalosos acontecimentos marcaram em todos os tempos a história dos Etruscos, parece dizer o historiador grego Teopompo, alcunhado, de "a pior das comadres". Em texto que ficou célebre, ele pincela para a posteridade um es­pantoso quadro dos costumes da Etrúria. Com um gosto todo especial pelas anedotas escabrosas e intrigas picantes, Teopompo apre­senta os Etruscos como o povo mais depra­vado, mais imoral e mais irreligioso da Anti­guidade.

"Entre os Tirrenos", afirma ele, "as mulheres vivem em comum; elas têm grande cuidado com o corpo e se exercitam nuas, muitas vezes com os homens, às vezes entre si; pois não é vergonhoso para elas se mos­trarem nuas. Sentam-se à mesa não ao lado dos maridos, mas dos primeiros dos comen­sais a chegar e elas bebem à saúde de quem bem entendem. São, aliás, grandes beberronas e muito bonitas para se ver. Os Tirrenos criam todas as crianças que vêm ao mundo, sem saber de que pai é cada uma delas. Essas crianças vivem da mesma maneira que suas armas, passando a maior parte do tempo em bebedeiras e tendo comércio carnal com to­das as mulheres indistintamente. Para os Tir­renos não é vergonha nenhuma serem vistos eles próprios praticando em público um ato venéreo ou a ele se submetendo; pois isso também é moda no país. E estão tão longe de encarar a coisa como vergonhoso que, quando o dono da casa está fazendo amor e o chamam, respondem: 'está fazendo isto, ou aquilo', dan­do, impudentemente, à coisa, o seu nome.

Quando têm reuniões, seja de socieda­de, seja de parentesco, procedem assim: a princípio, depois que terminaram de beber e se dispõem a dormir, os servidores mandam entrar para perto deles, com as tochas ainda acesas, ora cortesãs, ora rapazes muito belos, ora também suas mulheres; depois de terem tido seu prazer com eles ou elas, mandam dei­tar jovens em pleno vigor com aqueles ou aquelas. Fazem amor e entregam-se a seus folguedos muitas vezes uns à vista dos ou­tros, mas o mais das vezes cercando seus leitos de cabanas feitas de ramos trançados e estendendo por cima seus mantos. É certo que têm muito comércio carnal com as mu­lheres, entretanto se comprazem muito mais com os rapazes e meninos. Estes são, no seu país, muito belos de se ver, pois vivem na mo­leza e depilam o corpo. Por outro lado, todos os bárbaros que habitam nas bandas do Oci­dente besuntam o corpo de pez e o rapam; e entre os Tirrenos há mesmo muitos estabele­cimentos técnicos para essa operação, como entre nós, os barbeiros. Quando vão lá, entregam-se aos cuidados do encarregado de qual­ quer maneira, sem ter vergonha de ser vistos até pelos passantes."
Os bárbaros suplícios de Mezêncio, rei de Caere

No ácido retrato que esboça dos cos­tumes etruscos, o historiador grego parece deliberadamente não tomar conhecimento das qualidades excepcionais desse povo. A nação de que Tito Lívio dizia "que era apegada mais do que qualquer outra às práticas religiosas, além do mais porque tinha especial compe­tência nessa matéria", essa nação, de fato, não foi contaminada senão tardiamente, pre­cisamente no momento em que sua famosa "disciplina", de rigor exemplar, caía em de­suso. Daí o discurso do Imperador Cláudio, e seus apelos para restaurar o colégio dos arúspices, último reduto contra a dissolu­ção dos costumes e a decadência. Teopompo se abstém igualmente de dizer que os ger­mes mortais que contaminaram a alma etrusca e romana eram germes... gregos e orientais.

Na realidade, o quadro sistematicamen­te escandaloso traçado por Teopompo tem ex­plicação em razões históricas. Os Gregos jamais esqueceram a terrível luta que os tinha oposto durante muitos séculos aos Etruscos, aliados dos Cartagineses. O que estava em jogo nessa luta era vital para uns e outros: tratava-se simplesmente do domínio do Medi­terrâneo ocidental. Os Etruscos opuseram igualmente ao expansionismo dos colonos gregos da Itália do Sul uma barreira intrans­ponível, seus piratas faziam reinar o terror em todas as costas italianas e ameaçavam os por­tos gregos estabelecidos naquela região. Houve também a famosa batalha naval de Alalia, nas costas da Córsega, onde os pri­sioneiros gregos caídos em mãos dos Etrus­cos sofreram um medonho castigo, ordena­do, conta Virgílio, pelo cruel Mezêncio, rei de Caere:

" Devo contar-te essas inomináveis ma­tanças? Os atos selvagens do tirano Mezên­cio? Que os deuses os façam recair sobre ele e sua raça! Chegava a ponto de atar seres vi­vos a cadáveres, mãos contra mãos, boca con­tra boca, e esses supliciados de um novo gê­nero, gotejantes de matéria e sangue corrom­pido, morriam nessa miserável indumentária, de morte lenta."

Essas atrocidades decerto deixaram na memória do povo grego traços indeléveis. Eles explicam, em grande parte, o caráter exageradamente calunioso das descrições de Teopompo.

O filósofo sírio Possidônio visita a Etrúria

Pois a essas bisbilhotices libidinosas, é bom opor o testemunho de Possidônio de Apaméia que, em fins do século II a.e.c., trou­xera de suas grandes viagens de estudos no Ocidente uma visão muito mais equitativa dos costumes etruscos. Se Teopompo não passa de um compilador medíocre e maldizente, já Possidônio é um filósofo de rara têmpera.

Originário da Síria, abandona bem cedo a terra natal, leciona em Rodes onde tem co­mo ouvintes Cícero e Pompeu, e viaja por toda parte, na Grécia, no Egito, e especialmente na Itália onde se demora por muito tempo. Observador atento da sociedade romana, trava ami­zade com diversas personalidades etruscas de Roma que o levam a visitar algumas cida­des da Etrúria. O filósofo estóico, é claro, não tem nenhuma complacência com a deca­dência dos costumes que ele condena severamente. Mas sabe ver e fazer a diferença entre alguns elementos licenciosos, como se encon­tram por toda parte, e o restante da sociedade etrusca, sadia afinal em seu conjunto. Seu jul­gamento é equilibrado: se louva a coragem, o rigor religioso e o espírito empreendedor desse povo, julga, sem embargo, com severi­dade, sua tendência à indulgência e à luxúria. Vícios e virtudes nos são reproduzidos com o mesmo respeito à verdade.

Eis o texto de Possidônio, relatado por Diodoro da Sicília:

"Os Etruscos, que antigamente se dis­tinguiam pela energia, conquistaram vasto ter­ritório e ali fundaram muitas cidades impor­tantes. Dispunham também de poderosas for­ças navais e tiveram por muito tempo o domí­nio dos mares, de tal modo que o que banha as costas da Itália foi denominado por eles Tirreno. Aperfeiçoando o equipamento de seus exércitos de terra, inventaram o que cha­mamos de trombeta, que é da maior utilidade na guerra, e que foi por eles chamada tirrena, e prepararam marcas de honra para os gene­rais que os dirigem, atribuindo-lhes Iictores, um assento de marfim e uma toga bordada de púrpura. E, nas casas, inventaram o peristilo, que é de grande comodidade contra o alarido causado pela turba dos domésticos. A maioria dessas descobertas foi imitada pelos Roma­nos, que as aperfeiçoaram e introduziram em sua civilização. Fizeram progredir as letras, as ciências da natureza e a teologia, e desen­volveram, mais do que qualquer outro povo, a observação dos raios. É por isso que ainda em nossos dias inspiram viva admiração aos que são donos de quase todo o mundo (isto é, os Romanos) e que deles se servem para inter­pretar os sinais celestes."

Depois dessa justa homenagem à Etrú-ria, Possidônio nos descreve o modo de vida desse país. Uma vida opulenta graças à rique­za excepcional de seu solo. É essa, pensa o filósofo Possidônio, a razão profunda da deca­dência etrusca. Num clima por demais gene­roso, os Etruscos perderam o vigor que era louvado em seus ancestrais:

"Como habitam", prossegue Possidônio, "uma terra fértil em frutos de toda sorte e a cultivam assiduamente, gozam de uma abundância de produtos agrícolas que não só basta a seu sustento como os induz a um luxo excessivo e à languidez, pois mandam servir duas vezes por dia mesas suntuosas com tudo o que contribui para uma vida delicada, prepa­rar toalhas de mesa bordadas de flores, servir uma quantidade de vasos de prata e têm a seu serviço considerável número de escravos. Destes, alguns são de rara beleza, outros adornados com vestes mais magníficas do que convém ao estado servil e entre eles os domésticos têm residências particulares de todo tipo: aliás o mesmo acontece com a maioria dos homens livres. Em geral aparta­ram-se da valentia que prezavam nos tempos antigos e, à força de viverem em banquetes e delícias efeminadas, perderam, como não seria de admirar, a reputação que seus ances­trais haviam adquirido na guerra. Mas o que mais do que tudo contribuiu para entregá-los à languidez foi a qualidade de suas terras, pois, habitando um país que produz tudo e é de uma fecundidade sem limite, eles armaze­nam uma fartura de frutos de toda espécie. A Etrúria, de fato, é muito fértil, desdobrando-se em geral em planícies separadas por coli­nas de encostas cultivadas, e é moderadamen­te úmida, não somente na estação do inverno, mas também durante o período do verão."

Languidez, amor ao luxo e aos banque­tes: essas palavras voltam seguidamente na pena dos poetas e historiadores gregos e la­tinos para definir os Etruscos, gorduchos e obesos. Catulo, evocando as diversas povoa­ções da Itália, coloca entre o "Umbriense eco­nômico" e o "Latino tisnado e de bom ape­tite " o "Etrusco obeso". Virgílio, por seu lado, descreve um sacrifício celebrado ao som da flauta, "quando um corpulento Tirreno soprou no marfim junto aos altares". Catão, o censor desconfiado dos costumes romanos, invectiva alguns funcionários etruscos cheios de enxúndia: "Como o Estado poderia tirar partido de um corpo onde todo espaço, da garganta à cin­tura, é ocupado pelo abdômen?" Quanto ao poeta satírico Lucílio, cobre de zombarias os figurões etruscos "glutões, comilões e esga­nados que se fartavam de toucinho e de lom­bo de porco, se empanturravam de aspargo tenro e de couves-flores e se escangalhavam devorando camarões e esturjões gigantes" . E com esta flecha acerada, o bardo encerra sua diatribe: "Salve, vocês que não passam de ventres!" Outro satirista, Lélio, tece louvores à frugalidade vegetariana, que opõe ao desregramento alimentar dos Etruscos e afirma que a gula, "tão familiar aos habitantes da Etrúria", é incompatível com um espírito vivo e sutil: "Como poderiam eles ter sabedoria, eles cujo coração está cheio de sujidade e vinho?"

Essa indesejável reputação dos Etrus­cos não transparece somente nos textos lite­rários de que acabamos de citar alguns exem­plos. Há igualmente documentos arqueológi­cos que autorizam a imagem de um povo etrusco voltado para a languidez, a libertina­gem e a gula. Nos afrescos fúnebres de Vulci, de Caere, de Tarquínios, pululam cenas de banquetes e comezainas. Uma estátua, atual­mente conservada no museu de Florença, nos mostra um Etrusco obeso (aliás, é esse o no­me dessa terracota). Ora, que vemos ali? Vas­to saco de carne, esparramado diante de nós e com um ar bonachão. Uma coroa de flores pende de seus ombros e, descendo os olhos por seu braço direito, vemos, na extremidade, uma enorme taça de vinho empunhada com displicência. No anular da mão esquerda cin­tila pesado anel. Mas o que chama mesmo a atenção no personagem é a barriga. Redonda e enorme, ostentando soberbo umbigo nu!

As razões políticas e religiosas da decadência etrusca

De que maneira, indaga-se, povo tão profundamente religioso, fez prova de valen­tia e temeridade, autor da primeira e mais bri­lhante civilização em solo italiano, pode cair em tal decadência? Pois mesmo sem dar fé exclusivamente às calúnias de Teopompo, é um fato que os costumes etruscos se afrou­xaram perceptivelmente. Há, como vimos, a explicação de Possidônio: a riqueza do solo etrusco. Mas queremos crer que outras ra­zões, mais profundas, aceleraram essa deca­dência. Como sempre, trata-se de razões reli­giosas e políticas. A religião etrusca, salienta­mos, é essencialmente fatalista. Segundo os Libri fíituales, ou livros rituais, hoje desapa­recidos, a duração da nação etrusca foi fixada, com implacável rigor, em 10 séculos. E sabe­mos, graças, especialmente, aos eruditos tra­balhos de Massimo Pallottino, que a cronolo­gia etrusca começa no século X a.e.c., precisa­mente em 968.

"Do mesmo modo que nos 10 primei­ros séculos de sua vida", escreve o eminente etruscólogo, "o indivíduo, mediante sacrifí­cios, podia premunir-se contra o destino, a na­ção, também ela, tinha possibilidade de se es­cudar contra os golpes da sorte... Mas a existência do povo etrusco, como individuali­dade étnica, não ultrapassou os limites que os próprios Tirrenos se tinham imposto... Essa submissão à fatalidade explica a atitude ado­tada pelos Etruscos da época recente: o desa­parecimento era inevitável, previsto desde a origem dos tempos e teria sido fútil querer mudar o curso do destino."

A pluralidade dos documentos arqueo­lógicos e literários anteriormente se refere precisamente a esses "Etruscos da época re­cente", isto é, os Etruscos que viviam nas últi­mas fases de sua cronologia, fases após as quais não haveria senão o nada e a morte. O Etrusco obeso do museu de Nápoles, que vi­via, segundo toda probabilidade, no século I ou II antes de nossa era, tinha sem dúvida ní­tida consciência do fatal prazo que espreitava inexoravelmente sua própria nação. Herdeiro de um passado glorioso mas, reduzido por Roma à condição de vassalo, sabendo que o "fim dos tempos" estava muito próximo, o obeso de Nápoles abandonara-se assim sem freios aos prazeres da mesa — os últimos que o poder romano concedia sem rabujar aos notáveis da Etrúria.

Um ideólogo nazista julga os Etruscos

Vinte séculos depois, essa " tolerância" de Roma para com os Etruscos será vivamen­te criticada pelo ideólogo nazista Alfredo Rosenberg, em seu Mito do Século XX. Consi­derando os Romanos como Indo-Europeus — o que é ponto pacífico — e os Etruscos como povoação semítica misteriosa, surgida dos confins da Ásia, Rosenberg nega o valor da herança etrusca e sustenta que a civilização e, sobretudo, a religião etruscas precipitaram a decadência romana. Pois, aos olhos de Ro­senberg, a Etrúria não passa de um "centro judeu-semítico" que Roma deveria ter aniqui­lado com a máxima energia.

"Roma", escreve ele, "foi fundada por uma vaga nórdica que, muito antes dos Ger­manos e Gauleses se espalhara pelos vales férteis do Sul dos Alpes, destruindo o domínio dos Etruscos, esse misterioso povo forasteiro oriundo da Ásia primitiva.

Os Romanos representam o sangue nórdico, mas os Etruscos, que povoam parte da Itália antes do advento dos Romanos, re­presentam o sangue asiático...

É aos Etruscos que se devem as terrí­veis orgias das bacanais, todo o aparelho de magia e feitiçaria que manchou a religião romana.

Em suma, os Etruscos envenenaram o sangue romano e transmitiram à Igreja Cristã seu mundo imaginário de tormentos do além. É preciso romper com todas essas infames superstições que o espírito etrusco legou à Idade Média, mas então desmorona-se tam­bém absolutamente a Igreja Romana para sem­pre ligada aos tormentos do mundo infernal etrusco."

Mais ainda que o caráter semítico dos Etruscos, que ainda está para ser demonstra­do, a última afirmativa do ideólogo nazista so­bre o legado da superstição etrusca à Igreja cristã e à Idade Média parece pura fantasmagoria.


Fonte: http://www.historia.templodeapolo.net/