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A Civilização Etrusca (parte-III)

Iniciado por Hera, Setembro 17, 2016, 11:07:42

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Hera

Uma ruptura brutal na arte etrusca

Se ainda ignoramos os elementos pre­cisos da metafísica etrusca, constatamos po­rém suas abruptas variações. Graças a recen­tes escavações efetivadas em cidades etruscas tão distantes entre si como Marzabotto, ao norte, e Caere, ao sul, verifica-se que a representação do além muda radicalmente no século V.

Antes desse período, os túmulos são verdadeiras casas funerárias. As câmaras onde jazem os corpos se abrem para um cor­redor ou mesmo circundam um átrio. Estão cheias de abundante mobiliário e de ricos utensílios domésticos. As pinturas murais evocam festas, banquetes, caçadas, concer­tos e, sobretudo, cenas de guerra onde se vêem soldados etruscos, esguios, de porte garboso, abater os inimigos. Um ambiente de felicidade e triunfo se manifesta na escolha das cores vivas e nas atitudes harmoniosas dos personagens. A Etrúria parece segura de si, próspera, vitoriosa em todas as frentes. Como vimos, é a época da grande expansão etrusca. A partir do século V, tudo muda abrup­tamente. As cores tornam-se menos vivas, mais sombrias. Os vermelhos-vivos, os amarelos-berrantes, pouco a pouco, dão lugar às cores de luto, de tristeza e de morte: o roxo- escuro, o vermelho-ocre, o azul-carregado se tornam as cores dominantes nas pinturas fú­nebres. O lôbrego colorido que invade a arte etrusca reflete-se também na representação mais contrastada, dos personagens: homens, deuses e demônios continuam, é certo, a en­tregar-se a banquetes e a algumas festas. Mas falta a suas atitudes liberdade e espon­taneidade. Os gestos são mais afetados, os rostos inquietos: um tormento secreto, uma angústia reinam desde então na arte etrusca. Tormento e angústia que persistirão até o fim da civilização etrusca e seu total desapare­cimento.

O reino dos mortos não é mais aquele conjunto, quase sorridente, de sepulturas ma­ravilhosamente arranjadas que circundam o átrio, mas sim um mundo tenebroso que se abre para os Infernos. A Etrúria no século V sofre seus primeiros revezes: guerras inces­santes contra Roma e os outros povos itáli­cos, derrotas em terra e no mar infligidas pelos Gregos da Itália do Sul, lutas intestinas entre Tarquínios e Vulci, entre Caere e Chiusi. A confederação etrusca se desmantela pouco a pouco. O império etrusco agoniza. E sua agonia se reflete numa representação cada vez mais terrificante do Inferno.

Rostos contorcidos de dor e deformados por horríveis caretas

Nesse inferno etrusco reina um povo variegado de demônios e gênios. Seu número e seus nomes, como os dos deuses, variam conforme as cidades e as épocas. Na tumba dos Sette Camini, em Orvieto, vemos Athrpa, espécie de Parca de feições atormentadas, imperar no meio de um banquete fúnebre. Em outra parte, na tomba deltorco, em Tarquínios, vê-se Lasa apresentar um rolo no qual estão consignadas as ações do morto. Em outras sepulturas, em Tarquínios ou em Arezo, vêem-se demônios embiocados numa cabeça de lobo, monstros alados de três cabeças e com quatro patas de pássaro. Em Volterra, cujas impressionantes necrópoles foram evocadas por D'Annunzio, encontramos Vanth, demônio fe­minino de andar inquietante. Trajando longo hábito de cor ocre, com duas asas, segura na mão o Livro do Destino e assiste, impassível e muda, à agonia dos moribundos. Aqui o realismo etrusco explode com rara violência: os rostos dos mortos, pintados com cores que lembram as carnes desfeitas, estão contorci­dos de dor, deformados por horríveis caretas. Outro demônio feminino, Culsu, aparece em certas sepulturas de Volsínios agitando to­chas e tangendo impiedosamente um cortejo de mortos. Aqui e ali surgem muitos outros demônios nos afrescos das necrópoles toscanas: demônios de casco fendido e chifru­dos, armados com paus e infligindo aos fale­cidos mil tormentos.

Cáron, demônio etrusco da morte

Mas o senhor absoluto do reino dos mortos etruscos, o único demônio que é visto em quase todas as pinturas funerárias é Cá­ron, ao qual Franz de Ruyt consagrou uma obra apaixonante. Apesar de antigo, Cáron, Demônio Etrusco da Morte, permanece um clássico irretocável, obra-prima que realiza a rara façanha de aliar a mais sábia erudição à clareza (ao contrário — ai de nós! — de ou­tras obras tão "sábias" que são praticamente impossíveis de assimilar e cuja leitura é tão difícil como a do. .. etrusco).

" Cáron aparece no século V " , escreve Franz de Ruyt. " Torna-se até onipresente. É o Rosto da Morte. Como se pudesse, como se devesse, a partir de então, mostrar que se tinha diante de si a morte, que a morte é nosso futuro para todos e que ela nos faz medo. Ouça-se exprimir esse medo, reconhecê-lo.

Cáron, na aparência um homem, ho­mem muito feio, mas homem. O 'realismo' com o qual ele é pintado ou esculpido é sur­preendente. Seu nariz é grosso e adunco, as orelhas compridas e pontudas, os cabelos e a barba desleixados, os dentes rilhando. O personagem tem algo de horrível, de anima­lesco. Distingue-se dos homens nas pintu­ras pela cor; geralmente é pintado de azul- escuro."

Seus olhos são como duas brasas imóveis

Como o vemos, o demônio Cáron, que não obstante toma seu nome emprestado do famoso Caronte grego, nada tem do pacífico barqueiro do Estige, o valente velhinho que, segundo a lenda, se limita a transportar os mortos em sua barca. O Cáron etrusco aproxima-se mais do pavoroso demônio descrito, no canto sexto da Eneida, pelo vate latino, de origem etrusca, Virgílio:

Terribili squalore Charon, cui plurima mento

Canities inculta jacet, stant lumina flammae,

Sordidu ex humeris nodo dependet amictus.

(É Cáron, demônio medonho e repelente / Uma longa barba hirsuta e branca / Orna seu queixo / Os olhos são duas brasas imóveis / Um sórdido farrapo atado por um nó / Cai-lhe dos ombros.)

Nos inúmeros sarcófagos onde se pode ver Cáron, o demônio etrusco castiga, bate, atormenta e inflige aos mortos que acaba de acolher em seu sinistro reino os mais variados suplícios. Existe até um afresco, achado em Tarquínios, em que Cáron arranca um homem aos últimos abraços de seus parentes para desferir-lhe o golpe mortal. Numa estela de Bolonha, Cáron aparece como gigante hirsuto e aterrorizante tendo sobre o braço um homem a cavalo. Em outras estelas — em Arezzo, em Volsínios, em Tarquínios — Cáron arrasta atrás de si variada fauna onde se mesclam esfinges, grifos, hipocampos, monstros mari­nhos, leões devoradores. Um único demônio vem derramar um pouco de claridade e de ca­lor humano no reino tenebroso e cruel de Cáron. É um demônio masculino, de traços re­gulares, do qual a tradição etrusca não con­servou o nome. "É mais jovem e mais amá­vel", comenta Franz de Ruyt, "e assiste em seu ofício Cáron, ao qual serve, mutatis mutandis, como uma espécie de sancho-pança."

Do Nergal babilónico ao Cáron etrusco

Os sofrimentos e tormentos a que Cá­ron submete suas vítimas durarão eternamen­te no além? Porventura implicam que a teolo­gia etrusca pressupunha a imortalidade da alma após a morte? Quanto a ele, Ruyt acredita que sim. Vê uma analogia entre Cáron e o deus assírio-babilônico Nergal, que tem o mesmo aspecto horrorizante. Puxando brasa para a sardinha dos que se inclinam por uma origem anatólia dos Etruscos, afirma que a concepção metafísica etrusca e babilónica têm numerosos pontos em comum. Todas duas imaginam uma vida no além.

"A natureza do ser humano", conclui o autor, " não varia no decurso das eras; suas reações psicológicas tampouco; muda, porém, sua manifestação exterior, determinada pelas contingências do momento e pela evolução das idéias. Cáron, demônio etrusco da morte, é um aspecto, aqui e agora, das reações hu­manas em face do mistério perturbador em que recai, inevitavelmente, esse outro bem, não menos estranho e incapturável: a vida."

Se não conhecemos a metafísica etrusca senão por comparações com outras religiões, dispomos porém de numerosos documentos que nos permitem ter uma visão relativamente clara e precisa dos aspectos práticos da religião etrusca, aspectos agrupa­dos sob a designação coletiva de "disciplina etrusca".

Que é, exatamente, essa disciplina? É o conjunto das regras que presidem às rela­ções entre os deuses e os homens. Tem como ponto de partida a busca escrupulosa da von­tade divina, por todos os meios disponíveis. Relâmpagos, trovões, as entranhas dos ani­mais sacrificados, o vôo dos pássaros, o cur­so dos astros, o aparecimento dos cometas, as chuvas, os sonhos e os pesadelos, os an­dróginos, as crianças de duas cabeças, os bebês prematuros, as árvores, as abelhas: tudo é pretexto para os magos, os arúspices e os adivinhos etruscos para prognosticar e prever o futuro.

A "disciplina etrusca" se divide, essen­cialmente, em três grupos: a arte de interpre­tar os relâmpagos, os raios e os trovões, a arte de ler nas entranhas das vítimas sacrifi­cadas, e por fim uma terceira arte, mais sutil, a dos prodígios cujo sentido profundo os arús­pices etruscos devem penetrar.

Sinais divinos enviados aos mortais

A arte de interpretar relâmpagos, tro­vões e raios está registrada em alguns dos livros sagrados etruscos, os livros dos raios, Libri Fulgurales. Desses livros, perdidos como a maioria dos documentos religiosos etruscos, não nos restam senão alguns indícios e anedotas relatados por Sêneca, Plínio, Cícero, Aulo Gélio e Nigídio Fígulo.

Essa arte, explica Sêneca, baseia-se numa convicção essencial entre os Etruscos: os sinais do céu são destinados pelos deuses a informar os mortais sobre suas intenções. São, portanto, sinais divinos que é absolutamente importante compreender.

"Entre os Etruscos", escreve o filósofo latino espanhol de nascença, "os mais há­beis dos homens na arte de interpretar os re­lâmpagos, e nós, há a diferença seguinte: nós pensamos que o raio é disparado porque hou­ve uma colisão de nuvens; já para eles, dá-se a colisão para que o raio seja disparado. Relacionando todas as coisas com a divindade, estão convencidos, não de que os raios fazem sinais por terem sido produzidos, mas de que eles se produzem porque têm algo a significar."

Depois de ter esclarecido a atitude dos Etruscos ante esse fenômeno celeste, Sêneca expõe uma classificação dos raios louvando-se, acrescenta, numa autoridade incontestá­vel, a de Aulo Caecina, originário da Volterra e pertencente a uma família etrusca rica e culta. Desterrado por César, Caecina foi en­viado à Sicília e foi de lá que trocou numero­sas cartas com Cícero que o considerava não só excelente escritor, mas também um perito na arte divinatória... "O conhecimento real­mente maravilhoso da disciplina etrusca", es­creve Cícero a Caecina, "que você recebeu de seu pai, cujo mérito igualava a nobreza da origem..."

É, portanto, nessa fonte segura que se apóia Sêneca para classificar os raios:

"Se desejamos classificar os raios", escreve Sêneca, "temos aquele que trespassa, aquele que quebra, aquele que queima. Trespassa quando é uma chama penetrante que, graças à sutileza de seu fogo puro e sem mescla, pode insinuar-se pela mais estreita passagem. Ele faz espatifarem-se os objetos quando é cerrado e nele se mistura uma abun­dância de ar condensado que sopra tempes­tuosamente. Enquanto que o primeiro volta e escapa pela abertura que o deixou penetrar, o segundo, fazendo sentir sua potência sobre um largo espaço, estrondeia, mas não perfura os objetos que atingiu.

A terceira variedade, a que queima, contém muitos elementos terráqueos; tem antes a natureza do fogo do que a da chama. Por conseguinte, deixa vastos traços de quei­madura, que permanecem sobre os objetos to­cados por ele. É certo, não existe raio sem fogo, mas chamamos de especialmente ígneos aqueles que imprimem marcas visíveis de combustão, aqueles que queimam ou enegre­cem. De três maneiras queima os objetos: ou aflorando-os de leve com seu sopro de fogo não causando senão danos ligeiros, ou consumindo-os, ou incandescendo-os. Isto também são queimaduras, mas estas queimaduras di­ferem de caráter e de intensidade (...)

Passo agora à espécie de raio que ene­grece o que atinge. Ou ele colore os objetos, ou os descolore. Pois devo traçar uma distin­ção entre esses dois efeitos: um objeto é des­colorido quando sua cor fica estragada mas não muda; é colorido, quando seu aspecto se modifica, quando, por exemplo, passa do azul ao negro, ou quando embranquece."

Raios que brotam... do chão

Plínio, por seu lado, assinala, referin­do-se a "escritos etruscos", que o raio é lan­çado por nove deuses e que há 12 variedades de raios porque Tínia-Júpiter também lança três. Relata também uma estranha crença etrusca relativa a raios que brotam ... do chão.

"A Etrúria", relata Plínio no Livro II de sua História Natural, "pensa que da terra bro­tam raios que ela chama de inferiores: a esta­ção invernosa os torna particularmente cruéis e execráveis, pois todas as coisas por eles consideradas como terrestres diferem das coisas 'gerais' que vêm dos astros e nascem do elemento mais próximo que, segundo eles, é o mais turvo. Uma prova evidente é que to­dos os raios altos que caem do céu fustigam em ziguezague e os chamados terrestres em linha reta. Mas o que faz crer que estes saem da terra é que eles caem de uma fonte mais próxima do que os astros; é bem verdade que não revelam nenhum traço devido a um rico­chete, mas trata-se do indício de um golpe direto, não de um golpe vindo de baixo. Alguns têm o requinte de acreditar que esses raios provêm de Saturno, assim como os raios in­cendiários vêm de Marte, como o que consu­miu inteiramente Volsínios uma das mais ricas cidades da Toscana. Dá-se o nome de 'raios de família' aos primeiros que estalam quando o indivíduo se torna chefe de família, os quais predizem o destino para toda a vida. Pensa-se, ainda, que para os particulares o al­cance de seus presságios não ultrapassa 10 anos, exceto os raios que ocorrem no momen­to da primeira cessão patrimonial ou no dia do nascimento, e que para os Estados não ultrapassa 30 anos, salvo quando se trata da fundação de uma colônia."

Proibição de incinerar um homem atingido por raio

Plínio explica a seguir a maneira como os adivinhos etruscos procedem para fazer a diferença entre raios favoráveis e raios des­favoráveis. Essa arte, na qual, como sabemos, os adivinhos etruscos são mestres consuma­dos, persistirá por muito tempo entre os Ro­manos, mesmo bem depois do desaparecimento político da Etrúria e de sua absorção pelo império romano. Veremos assim esses adivi­nhos acompanhar em suas conquistas as le­giões romanas, escrutar o céu em busca dos sinais celestes e aconselhar os generais a que estão ligados.. .

"Os raios",escreve Plínio, "que se pro­duzem no lado esquerdo do céu são julgados favoráveis, porque a parte esquerda do céu é a do levante e considera-se menos sua chega­da do que sua volta, seja porque o choque faça sair fogo, seja porque o sopro se vai, uma vez realizada a obra ou esgotado o fogo. Os Etruscos dividiram o céu em 16 setores para essas observações. O primeiro quadrante estende-se do setentrião ao nascente équinoxial, o segundo até o sul, o terceiro atinge o poente équinoxial, o quarto ocupa o espaço restante entre o poente e o setentrião. Cada quadrante é novamente dividido em quatro setores; cha­mam 'esquerdos' aos oito situados do lado do nascente, 'direitos' aos oito situados do lado oposto. Entre esses setores, os mais nefastos são os do oeste contíguos ao norte. Muito im­portante também é saber de onde vieram os raios e para onde se retiraram. No caso mais favorável, eles voltam para as regiões orien­tais. Assim, quando vindos do primeiro setor, voltam para ele, é o presságio de extraordinária felicidade, tal como o prodígio que foi ou­torgado, dizem, ao ditador Sila. Os outros são proporcionalmente menos favoráveis ou ne­fastos, segundo o setor do céu em que aparecem. Há alguns, ao que se crê, dos quais não é permitido dar nem escutar inter­pretação, salvo se a revelamos a um hós­pede, ou a seu pai ou sua mãe. Reconheceu-se quanto é vã a observação dessas regras, quando o templo de Juno em Roma foi atingido pelo raio sob o consulado de Scaurus, que logo se tornou príncipe do senado.

Os relâmpagos sem trovão se produ­zem antes à noite do que de dia. O homem é o único ente animado que o raio nem sempre mata; todos os outros são mortos pelo raio; aparentemente é um privilégio que a natureza lhe concede, enquanto que grande número de animais o superam em força. Todos os entes animados caem do lado oposto ao golpe; o homem não recupera a vida se não se voltar sobre o lado atingido. Atingido do alto, ele cai; atingido em estado de vigília, é encontrado de olhos fechados; em estado adormecido, de olhos abertos. É proibido incinerar um homem morto dessa maneira; a tradição religiosa quer que ele seja enterrado. O raio não incendeia nenhum ser vivo, salvo já morto-. As chagas dos fulminados são mais frias do que o resto do corpo."

Um calendário de excepcional riqueza documentária

Nesse domínio dos fenômenos celes­tes que preocupam tão profundamente os Etruscos, dispomos de um documento muito importante, relativo aos trovões. Trata-se do calendário brontoscópico de Nigídio Fígulo. Esse filósofo latino, contemporâneo de Cícero e adepto da mística órfica, afirma que obteve esse calendário "de uma fonte etrusca in­discutível".

Eis como se apresenta esse calendário. O autor segue a ordem dos meses a partir de 1.° de junho; são todos meses de 30 dias, mes­mo fevereiro, e não há mês intercalado. Para cada dia do mês, a significação do trovão vem indicada: pressagia um acontecimento feliz concernente seja à agricultura, seja à vida pú­blica ou social. Esse calendário brontoscópico não nos coloca a par unicamente das supersti­ções religiosas dos Etruscos, mas também — fato muito mais revelador — sobre sua manei­ra de viver. A importância dada às colheitas, aos animais, aos frutos e à atividade agrícola em geral exprime quanto esse povo de campo­neses era visceralmente ligado à sua terra.

Graças a esse calendário, sabe-se que os Etruscos cultivam o trigo e a cevada, criam carneiros e bois, consomem peixes de água salgada e de água doce, temem as bestas sel­vagens, os gafanhotos e as inundações, dese­jam a chuva, pois freqüentes secas os obri­gam, um ano em cada dois, a importar seus víveres.

Além dessas informações agrícolas, o calendário brontoscõpico nos fornece infor­mações políticas sobre as cidades etruscas. Ficamos sabendo assim que, na Etrúria, existe uma cidade-rainha (Tarquínios) e cidades-súditas. No interior da cidade-mãe, a autoridade parece estar em mãos dos poderosos. Entre os poderosos e o povo a oposição é constante. Fala-se às vezes num rei, qualificado ora de "mestre das causas", ora de "tirano", ora de "magnífico senhor".

O calendário insiste sobretudo no tema da discussão. Estranhamente, é o termo que mais se encontra no calendário (43 vezes). Dessa dissensão, nasce a ameaça da tirania. Constantemente se faz um apelo à concórdia entre os habitantes da cidade. À testa do go­verno há um Senado, que parece jamais lograr o estabelecimento da harmonia e da concór­dia entre os "grandes" e a plebe. Plebe que, por outro lado, parece estar a cada passo na iminência de uma revolta, algumas vezes che­gando mesmo a efetivá-la.

Por conseguinte, a sociedade etrusca é uma sociedade em equilíbrio precário, perma­nentemente ameaçada pelas guerras civis, os assassinatos e as conspirações.

Um quadro vívido e fascinante da vida etrusca

Damos a seguir, com base na tradução francesa de Louis Legrand, os indícios forne­cidos, dia a dia, sobre as múltiplas significa­ções dos trovões durante todo o mês de junho. Isso nos permitirá, como diz admiravelmente o tradutor e autor dessa tese, "andar a par com o homem etrusco, entrar em sua intimi­dade do dia-a-dia, descobrir suas preocupa­ções não só religiosas, mas também práticas, adivinhar seus receios, suas esperanças, em duas palavras, vê-lo viver. Nenhum outro texto nos proporciona um quadro tão vívido, tão fas­cinante do desfiar quotidiano da vida em ter­ras da Etrúria".

Eis, pois, o documento, do qual só su­primimos a primeira frase "se troveja" repe­tida sistematicamente no início de cada dia (naturalmente, nós a assinalamos para o pri­meiro dia do mês de junho):

"1.° de junho — Se troveja, haverá sa­fras abundantes; a cevada será exceção. Peri­gosas moléstias atingirão o homem.

2 — Os nascimentos serão menos tra­balhosos para as mães; o gado morrerá; have­rá peixe em abundância.

3 — Haverá calores muito secos; por isso não somente os frutos secos, mas tam­bém os tenros serão completamente esturri­cados pela seca.

4 — O ar será úmido e chuvoso, a ponto de as colheitas apodrecerem e se perderem.

5 — Será funesto para os campos. Os que governam as povoações e aldeolas terão dificuldades.

6 — Um caruncho muito pernicioso nascerá no meio da colheita e a atacará quan­do já madura.

7 — As moléstias virão; porém mata­rão pouca gente. Os frutos secos resistirão, os outros secarão.

8 — Isso anuncia chuva copiosa e mor­te do trigo.

9 — Os rebanhos morrerão presa de incursões dos lobos.

10 — As mortes serão freqüentes, mas haverá farta colheita.

11 — Calores inofensivos; a república estará na abundância.

12 — Será a mesma coisa que o dia precedente.

13 — É a ameaça de ruína de um ho­mem muito poderoso.

14 — O ar estará muito quente; sem embargo, haverá uma colheita muito abun­dante, e não menor fartura de peixes flu­viais. Entretanto, os corpos estarão debi­litados.

15 — As aves serão muito incomoda­das peio estio; os peixes morrerão.

16 — É não somente o presságio de di­minuição da safra, como também de guerra; um homem muito abastado morrerá.

17 — Haverá abundância, morte de ra­tos, de toupeiras e de gafanhotos; entretanto, o ano trará ao povo romano a riqueza e tam­bém assassinatos.

18 — É o presságio da desastrosa es­cassez de frutos.

19 — Morrerão os animais daninhos aos frutos.

20 — É uma ameaça de dissensões en­tre o povo romano.

21 — É uma ameaça de escassez do vinho, de fartura de outros produtos e de pei­xe em abundância.

22 — O calor será desastroso.

23 — É o sinal da alegria, do fim dos males, da cessação das moléstias.

24 — É uma promessa da abundância de bens.

25 — As guerras e infortúnios serão inumeráveis.

26 — O inverno prejudicará as colheitas.

27— Haverá para os principais da repú­blica um perigo proveniente do exército.

28 — Haverá colheitas abundantes.

29 — Melhoria para os assuntos da cidade.

30 — Não tardará a haver abundância de mortos.

Um único raio que caiu matou um touro e cinco vacas

No final da tese de onde extraímos esse texto do calendário brontoscópico, Louis Legrand insiste no caráter secreto, esotérico, desse calendário. Como todos os livros sagra­dos etruscos, ele é reservado exclusivamen­te ao uso dos arúspices encarregados de son­dar a vontade dos deuses examinando e inter­pretando judiciosamente os sinais do céu: trovão, raio, relâmpago ou chuva. Os inúme­ros testemunhos que nos deixaram os cronis­tas romanos atestam a importância conside­rável dada à adivinhação, tanto na sociedade toscana como, mais tarde, na sociedade ro­mana que adotou com fervor o conjunto da "disciplina etrusca".

"A espera de uma nova guerra", escre­ve Tito Lívio, "matinha suspensa a cidade, quando o raio, em meio de uma violenta tem­pestade que desabou durante a noite, bateu e quebrou uma coluna ornamentada com talha-mares de navios, que o cônsul, M. Emílio, co­lega de Sen. Fúlvio, tinha erigido durante a primeira guerra púnica. Esse acontecimento, arrolado entre os prodígios, foi levado ao co­nhecimento do senado. Os senadores ordena­ram que se informassem os arúspices. Esses últimos declararam que era necessário fazer ao redor da antiga cidade, a cerimônia da lustração, visitar processionalmente os templos, fazer no Forum a prece de costume, imolar grandes vítimas, em Roma, no Capitólio e na Campanha, no promontório de Minerva; final­mente celebrar o mais cedo possível, duran­te 10 dias, jogos em honra de Júpiter, o bom, o grande. Diante de todas essas expiações realizadas com cuidado, os arúspices respon­deram que esse prodígio redundaria em pro­veito dos Romanos e que aqueles talhamares que a tempestade derrubara, sendo despojos tomados ao inimigo, vaticinavam o engrande­cimento do território da república e a comple­ta destruição daqueles que iam ser combati­dos. Novos prodígios vieram encher a medida dos temores religiosos: em Satúrnia caíra uma chuva de sangue durante três dias e um único raio que batera tinha matado um touro e cinco vacas; em Auxime chovera terra. Para expiar esses prodígios fez-se tudo que a reli­gião prescrevia e durante um dia houve preces públicas e cessação de todo trabalho."

"Então, mandaram vir arúspices de toda a Etrúria ..

Cícero também não descuida de con­sultar os arúspices etruscos quando a Repú­blica está em perigo. Arúspices aos quais con­sagrou longas e elogiosas passagens. Em sua Terceira Catiunária, onde o orador romano nos conta a conjuração de Catilina, Cícero relata um episódio ocorrido em 61 a.e.c. Nesse ano numerosos fenômenos celestes — raios, tre­mores de terra, meteoros — semearam o te­mor e a agitação entre a população de Roma:

"Pois, sem falar de certos prodígios, como esses meteoros que, durante a noite, surgiram do Ocidente e abrasaram o céu; sem lembrar a queda do raio e os temores de terra; sem falar de todos os outros fenômenos que se manifestaram em tal quantidade em nosso consulado que os deuses imortais parecem ter previsto os acontecimentos atuais, pelo menos não se deveria, cidadãos, nem deixar passar em silêncio, nem deixar de lado o que vos vou dizer agora. Certamente não esque­cestes que, sob o consulado de Cotta e de Torquato, no Capitólio, grande número de objetos foram atingidos pelo raio: imagens dos deuses foram deslocadas, estátuas de nossos antepassados derrubadas, as mesas de bronze de nossas leis entraram em fusão, e o fundador de nossa cidade, o próprio Rômulo, foi atin­gido, ele que, estais lembrados, era represen­tado no Capitólio por um grupo dourado, crian­ça de colo, de lábios estendidos para as tetas da loba, sua ama de leite. Mandaram então vir os arúspices de toda a Etrúria: eles disseram que massacres e incêndios estavam próximos, e a subversão das leis, a guerra civil no seio da cidade, a ruína total de Roma e do império, se não fossem apaziguados a qualquer preço os deuses imortais cuja intercessão, talvez, suavizasse os decretos do destino.

Ante essa resposta, inicialmente foram instituídos jogos que duraram 10 dias; depois nada que pudesse aplacar os deuses foi omi­tido. Os arúspices prescreveram ainda erigir uma estátua maior a Júpiter e colocá-la sobre um pedestal elevado e, ao contrário do que aqui se pratica, voltá-la de face para o oriente. Esperavam, diziam, que se a estátua que avis­tais daqui encarasse o nascente e, ao mesmo tempo, o Forum e a Cúria, as maquinações que se urdiam contra a salvação da república e do império seriam de tal modo clareadas que o Senado e o povo romano conseguiriam des­vendá-las."

Duas vitelas brancas e 27 virgens

Outro caso, este narrado por Tito Lívio, nos mostra a que ponto as prescrições ordena­ das pelos arúspices etruscos eram seguidas ao pé da letra. Qualquer omissão, pensavam os Romanos, poderia trazer em sua esteira graves calamidades e perturbar o equilíbrio social e político da cidade. Um equilíbrio que cumpria preservar a todo custo, precisamente por meio da técnica divinatória dos magos etruscos.

"O fogo do céu", narra Tito Lívio, "caiu sobre o santuário de Juno Rainha, no monte Aventino. Os arúspices responderam que esse prodígio dizia respeito às damas romanas e que era preciso, por meio de um donativo, apa­ziguar a deusa: os edis curuis convocaram ao Capitólio todas aquelas que tinham domicílio em Roma ou até 10 milhas nos arredores. Lá, escolheram 25 entre elas, para que cada uma depositasse em suas mãos uma soma retira­da de seu dote. Essas oferendas serviram para fazer uma bacia de ouro que foi levada ao mon­te Aventino, onde as damas romanas oferece­ram à deusa um sacrifício puro e casto. Logo depois, os arúspices indicaram um dia para outro sacrifício à mesma deusa. Foi esta a ordem observada nessa cerimônia: saindo do templo de Apolo, duas vitelas brancas entra­ram na cidade pela porta Carmentale; após elas, vieram duas estátuas de Juno Rainha, feitas em madeira de cipreste; a seguir 27 moças, com vestes talares, avançavam can­tando, em honra de Juno, um hino bastante notável para aqueles tempos, mas cujos ver­sos hoje em dia pareceriam desprovidos de graça e de harmonia. As virgens eram segui­das de arúspices coroados de louro trajando suas togas pretextas. Saindo da porta, o cor­tejo tomou pela rua dos Jugos e foi parar em frente ao Forum; la, as jovens formaram uma dança circular, compassando a medida pelas modulações da voz e pelo movimento dos pés.

Os arúspices pérfidos condenados à morte

As crônicas romanas são assim rechea­das de histórias e anedotas que dão relevo ao papel vital desempenhado pelos magos, adivinhos e arúspices etruscos na cidade. In­ censados, festejados, cumulados de presen­tes e honrarias, desde que respeitem os "veros princípios" da adivinhação, os magos etruscos, sem embargo, são impiedosamente castigados quando fraudam ou abusam de seu saber, como atesta o seguinte episódio nar­rado por Aulo Gélio em seu Noites Áticas (livro IV, 5):


"Uma estátua, erigida no Comitium, de Horácio Cocles, homem de grande coragem, foi atingida pelo raio. Com a intenção de fazer sacrifícios expiatórios, mandou-se vir arúspi­ces da Etrúria, os quais, movidos por sentimentos de ódio e hostilidade nacional contra o povo romano, tinham decidido efetuar as cerimônias de expiação ao contrário do que prescrevia a religião. Aconselharam, com fal­sidade, que fosse transportada a estátua em apreço a um lugar menos elevado, que o sol nunca iluminava, pois era cercado por altas construções de todos os lados. Posteriormen­te, foram denunciados ao povo, desmascara­dos e, depois de terem reconhecido sua per­fídia, condenados à morte; decidiu-se que, conforme preconizavam os veros princípios, a seguir descobertos, a estátua devia ser leva­da para um local elevado, e por conseguinte ser colocada na esplanada de Vulcano que fi­cava a boa altura; depois do que, sucesso e prosperidade advieram ao povo romano. Foi nesse momento que, como punição e vingan­ça tinham sido aplicados aos arúspices etruscos que aconselharam para a desventura, segundo se conta, foi feito o seguinte verso, que é um chiste, e que os jovens cantaram pela cidade inteira: 'Mau conselho faz dano ao conselheiro'.

Essa história sobre os arúspices e so­bre esse verso está consignada nos Grandes Anais, livro undécimo, e no livro primeiro dos Acontecimentos Memoráveis de Vérrio Flacco. Mas o verso parece ser tradução do célebre verso grego de Hesíodo: 'Conselho mau a quem o deu é péssimo'."

Um documento ultraprecioso: o fígado de Plaisance

A par com a interpretação dos raios, dos trovões e outros fenômenos celestes, a prática dos arúspices, ou seja, o exame das entranhas das vítimas sacrificadas constitui o segundo compartimento da disciplina etrusca. Entre tais entranhas, o fígado ocupa um lugar à parte. O princípio fundamental das práticas dos arúspices etruscos pode ser assim for­mulado: toda coisa sagrada reproduz a imagem divina do universo. No animal sacrificado, o fígado, que é, segundo os Etruscos, a própria sede da vida, é de certo modo o espelho do estado do mundo no momento em que a vítima foi imolada. É por isso que nele se pode ler as disposições favoráveis ou desfavoráveis e, de modo mais geral, todas as vontades dos deuses. Um arúspice, desde que seja hábil e inspirado, pode adivinhar, graças a uma obser­vação atenta do fígado, as intenções mais sutis e mais ocultas das divindades.

Sobre essa prática etrusca dos arúspi­ces dispomos de um documento preciosíssi­mo: trata-se do famoso fígado de Plaisance, e ao qual Georges Dumézil dedica notável análise, embora por de­ mais complexa para ser aqui resumida. Diga­mos apenas que, para esse autor, o fígado de Plaisance simboliza a famosa oposição indo-européia entre o redondo e o quadrado.

A propósito desse fígado de Plaisance, cujas inscrições estão longe de estar todas decifradas e corretamente interpretadas, o etruscólogo francês Jacques Heurgon acha que ele foi fabricado em Cortona, cidade onde o que parece, a religião etrusca se manteve por mais tempo do que em outros lugares. "O ligado teria caído da bagagem de um arúspice em trânsito perto do cruzamento de estradas de Plaisance, talvez de um desses arúspices que serviam como adidos de um general em campanha ou de um governador de província." E Jacques Heurgon, levado pela fantasia, de­vaneia que o "arúspice desmazelado" bem po­deria ser o célebre Spurinna, arúspice de Cé­sar de que fala o historiador romano Suetônio!

O fígado, ocupa lugar privilegiado na prática etrusca dos arúspices. Mas esta nem por isso descuida dos outros elementos das entranhas como as vísceras, o coração ou os pulmões. Cada detalhe tem sua importância, como revela esta passagem em que o poeta latino Lucânio (Pharsale, livro !, 609) nos faz assistir a um sacrifício feito pelo adivinho etrusco Arruns. É um documento pre­cioso que faz reviver a pungente atmosfera das adivinhações mágicas praticadas pelos Etruscos:


"Já tinha começado a verter o vinho e a semear as farinhas com a folha de sua faca; a vítima, por muito tempo rebelde ao temido sacrifício, com os selvagens cornos mantidos pelos servidores de vestes curtas, de joelhos dobrados, estendia a cerviz vencida. Mas o sangue não jorrou como de costume: pela am­pla ferida, em lugar de sangue rubro, derra­mou-se um humor corrupto. Arruns, espantado desse infernal sacrifício, empalidece e agarra as entranhas para nelas descobrir a ira dos deuses celestiais. A própria cor já assustou o arúspice; pois as vísceras pálidas, mosquea­das de manchas escuras e impregnadas de sangue coagulado, sarapintavam seu lívido matiz com pontos sanguinolentos. Contempla o fígado embebido de pus, vê as veias amea­çadoras do lado hostil. A fibra do pulmão ar­quejante se dissimula e um pequeno sulco corta as partes vitais. O coração está embaixo, as vísceras deixam escapar o humor atra­vés de suas fissuras abertas, os intestinos mostram suas vilosidades e, prodígio indizível que jamais aparece impunemente nas entra­nhas, eis que Arruns vê crescer na cabeça das fibras a massa de uma outra cabeça; uma par­te pende enferma e murcha, a outra brilha e, enorme, sacode as veias com rápidos bati­mentos. Quando esses prodígios lhe fizeram conceber os grandes males fixados pelo des­tino, ele exclama: — Mal posso, deuses do céu, revelar ao povo aquilo que estais pondo em movimen­to; pois não é a ti, grandíssimo Júpiter, que faço este sacrifício, e os deuses infernais enTraram nas vísceras do touro degolado. O que tememos não pode ser exprimido, mas os acontecimentos superarão tudo que se teme. Possam os deuses tornar favorável aquilo que vi; possam estas fibras ser mentirosas e Tages, fundador desta arte, ser um impostor.

Assim vaticinava o Etrusco, envolvendo os presságios em termos ambíguos e dissimulando-os em longos rodeios."

As entranhas não palpitam como de hábito

Sêneca, por seu lado, nos descreve, em seu Édipo, a maneira como procediam os arús­pices para conhecer a vontade dos deuses. Tirésias e Manto procedem a um sacrifício na presença de Édipo e parecem aterrorizados pe­las anomalias apresentadas pelas entranhas. E, como na prática dos arúspices etruscos, to­da anomalia significa ruptura do equilíbrio na­tural e anuncia portando um mau presságio:

"Manto — Meu pai que é isso? As en­tranhas não palpitam como de hábito, soer­guendo-se com um leve movimento; repelem violentamente as mãos inteiras e as veias jorram novos borbotões de sangue. O coração, totalmente alterado, está flácido e se oculta enfurnado no fundo do corpo; as veias estão  lívidas; uma grande parte dos lóbulos dos pul­mões está faltando, o fígado carcomido exsuda uma bile negra e (presságio certo de amea­ça à unidade do reino) eis que duas cabeças se erguem dele, iguais pela massa de seus tecidos e essas duas cabeças têm cada uma suas lesões escondidas por delgada membra­na que as recobre, embora deixando perceber seus segredos: o lado hostil se incha numa massa sólida onde sete veias se estendem cortadas por uma linha oblíqua que as impede de voltar para trás."

Às vezes, o exame das entranhas pode levar a conclusões ambíguas. Se, no exemplo citado por Sêneca, as sete veias situadas no "lado hostil" não deixam a mínima dúvida so­bre a cólera dos deuses, a anedota contada por Tito Lívio mostra a que ponto o arúspice deve dar prova de sutileza e discernimento na "leitura" dos divinos sinais, mormente se fo­rem contraditórios.

"Os cônsules romanos", conta Tito Lí­vio (História Romana, livro VIII, 9), "antes de marchar para o combate, sacrificaram. O arús­pice etrusco, conta-se, fez ver a Décio que, na parte favorável, a cabeça do fígado estava mutilada; a vítima, no mais, era agradável aos deuses. O sacrifício de Mânlio tinha surtido efeito.

— Estou contente — diz Décio — , pois meu colega está bem com os deuses."

A interpretação é equívoca: um sinal funesto numa região favorável. Por isso o arúspice vaticina a Décio que ele vai con­seguir a vitória, mas morrerá no curso da batalha. " Foi o que aconteceu" , conclui Tito Lívio.