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Eva

Iniciado por Ziva75, Agosto 22, 2016, 09:09:37

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Ziva75

A uma herança ancestral de mulheres batalhadoras, sensuais e de sugestiva fecundidade, que antecipava na mitologia remota uma esperança libertadora, a tradição religiosa de nossa era agregou - e reforçou - a personalidade culpada de uma Eva que, em sua irreflexão, é levada pelo diabo a pecar. Uma Eva que, ao comer do fruto da árvore da sabedoria, seduz Adão e desencadeia o processo que culmina com a expulsão do casal do Paraíso, marcando o princípio de uma condição caracterizada pela dor, pelo trabalho e pela morte para toda a humanidade. A dor, esse castigo que aflige a consciência humana desde que a Deusa deixa de ser deusa para se converter em filha e esposa de Adão, prossegue com a sensação de vergonha que sofrem os dois por se haverem apartado de Deus e provocado a queda em conseqüência de seu descobrimento de eros, ou seja, de seu desejo de governar a própria sexualidade. A mulher, desde então, arrasta consigo o tríplice preconceito de haver cedido ao chamado do diabo; de se atrever a incitar ao pecado não a qualquer homem, porém ao mais inocente e puro de todos - àquele que, havendo resistido ao poder da serpente maligna, é seduzido, por sua própria inclinação, a sucumbir ante a imagem perfeita de seu Criador -; e, finalmente, de ser a culpada pela perda do Paraíso. Uma imagem controvertida, é verdade, pois, apesar de tudo, na presumida debilidade implícita de Eva caminha a liberdade de tomar suas próprias decisões. É ela, em seu renascimento como a primeira mulher representativa, quem explora uma experiência espiritual vivificante e profana, mas autenticamente sua. É Eva
também que carrega a peculiaridade de dispor de um caráter pensante que, mesmo predisposto ao emprego de artimanhas e com poder suficiente para escolher por sua própria força moral, desobedece a ordenação divina e assume o direito de viver entre o bem e o mal, entre o risco de se equivocar e o de refletir com uma emancipação geradora da nova ordem e do porvir humano dentro de sua plenitude racional. Segundo o mito do Gênesis, Adão é a prefiguração da excelência. Sua vontade triunfa sobre o Maligno porque, sendo mais temeroso do que Eva, não se atreve a atacá-lo; de antemão reconhece sua inferioridade e não transgride as leis. Sua soberba surge com a sedução da mulher. Diante da firmeza feminina demonstra-se uma vítima fácil, talvez porque o demônio reconhece na queda da deusa que assume sua humanidade uma característica semelhante à de sua própria condição, aquela mesma que levou a ele, que fora um anjo postado à destra do Pai, a invejar a onipotência infinita e, ao chegar o seu momento, encarnar o mal absoluto através de sua rebelião.    Em um dos mitos mais complexos e duradouros, o da fundação da espécie, se enredam os elementos da relação conjugal a partir daquilo que Santo Agostinho qualificou de vaidade feminina, a porção realmente instável no entendimento de sua suprema responsabilidade; ou seja, aquela expressada pela soberba que é, desde sempre, o mais abominável de todos os pecados, segundo os dogmas modernos. Santo Agostinho se refere ao amor segundo seu próprio poder, ao orgulho característico do anjo que persuade Eva de que, comendo o fruto proibido, adquirirá uma divindade semelhante à de seu belo corpo e, com ela, o poder de converter em reis do mundo a si mesma e a seu esposo. Se nos ativéssemos à mensagem dogmática, estaríamos diante da definição feminina da luta pelo poder absoluto. Trata-se de uma ânsia de domínio muito complicada, que surge da curiosidade do ser criado pela perfeita criação do Criador, já que Deus moldou Adão do barro e o animou com seu sopro divino, enquanto Eva foi formada de uma das
costelas de Adão. Isso pressupõe uma inteligência feminina engendrada de carne e osso, impossível de se manifestar no barro primordial, embora a carga de virtude plena se concentrasse na modéstia natural masculina, em tudo satisfeita com os dons que lhe foram prodigalizados no Éden. Até parece que, desde suas origens, a mulher fosse incapaz de suportar a felicidade completa, de ser outra coisa que não filha e esposa do homem, do Deus Pai, e o centro da dinâmica do pecado e de sua redenção. Por sua tendência a rebelar-se por meio da sensualidade, a maioria dos teólogos ainda associou a ela a cobiça, leia-se também a preexistência do impulso para a mudança, essa necessidade tipicamente humana da esperança que nos leva a supor que existe algo mais, diferente e melhor do que conhecemos e que, talvez, obtenhamos à guisa de recompensa por revelar um mistério: neste caso, o mistério da árvore do bem e do mal, que foi plantada por Deus no Paraíso sabendo Ele muito bem que, mais cedo ou mais tarde, suas criaturas provariam de seu fruto e que, uma vez condenadas ao trabalho com esforço, participariam do desenvolvimento do mundo parindo entre dores e redimidas pelo prazer; portanto novamente legitimadas em intervalos de grandeza e de declínio, de razão e de irracionalidade. Sujeita a maiores interpretações do que as suscitadas pela figura mais passiva de Adão, Eva inspira as duas posturas opostas do raciocínio: em uma, comum entre teólogos antigos e modernos, é atraída pela serpente porque carece de força moral e somente obedece aos ditames de sua sensualidade; na outra, adotada pelo feminismo psicanalítico, Eva é a deusa ante a morte de Deus na consciência humana. Deixou-se seduzir pelo demônio precisamente porque contava com um raciocínio eletivo superior ao do companheiro, ainda que, nas religiões contemporâneas, seu mérito seja substituído por uma deidade masculina e única - o Deus Pai -, aquele que cria e que age por si mesmo. É provável que o impulso pela mudança proviesse de sua
consciência primordial de fecundidade, já que a mulher fora talhada para isso desde o início, ou seja, para criar ou gerar vida, o que eqüivale a existir para o movimento e, como se sabe, a condição de uma atividade civilizadora é a mudança de um estado para outro, fato que, de todas as maneiras, explica a existência de seu espírito transgressor. Desde o ponto de vista do Gênesis, do Novo Testamento, do Talmude, do Alcorão, do hadith e da mariologia1, a mulher é a menos racional, a mais profana do casal e a culpada pela queda da humanidade. Responsável pelo pecado original e herdeira do poderoso caráter das deusas pagãs, inspira uma doutrina que somente adquire sentido através da expiação purificadora. Eva, além disso, é a portadora do signo perverso da palavra, já que tudo indica que a serpente falava e que a linguagem resultou de uma conspiração entre o réptil com Cabeça e língua masculinas e a sedutora criada para ser a ajudante e serva dos desígnios de Deus por meio do homem. Sua sexualidade é a preocupação essencial da tradição ocidental, da qual se desprende o preconceito em relação à feminilidade perversa que estigmatizou as fraquezas masculinas provocadas pelas mulheres. Deusa edênica, a costela de Adão não ignorou o símbolo fálico da serpente nem se apartou dos encantamentos característicos da sensualidade profana. Eva diabólica, ao ingerir o fruto proibido seduz ao pai-amante porque está imbuída dos poderes malignos; esposa de Adão, reconhece nos regalos sensuais o doloroso preço do prazer, mas também a piedade e a comunhão humana e redentora que a reconcilia com a esperança, base inequívoca da criação; deusa-mãe, é a criada criadora, consciente de sua fertilidade sucessiva e inclinada à compreensão de outras debilidades pelas quais  há  de  continuar  sua batalha paradisíaca entre o infinito absoluto e a mortalidade cambiante, entre a irracionalidade da inocência perfeita e a racionalidade responsável, sempre dinâmica e libertadora apesar do temor da queda. Restauradora, Eva engendra a vida e suas leis ordenadoras, quiçá como reação a fim de moderar seu próprio poder,
talvez como a forma exigida pelo ser humano para harmonizar a lembrança do que foi perdido, a realidade que se sofre "com o suor do rosto" e o desejo de restauração da excelência imutável protagonizada por um Adão idílico que surge, floresce e se esfuma em sua evidente infecundidade. A história de Eva é, afinal de contas, a história de uma idéia que representa a vida e o mundo. É também a referência iluminadora da palavra, semente das ideologias mais sugestivas e instrumento dual entre a luz e a escuridão. Desejo e remorso, gozo carnal, imaginação fundadora e força libertadora: ela é a mulher, a deusa, a mãe e a amante, a abnegada parideira de homens que atravessa os séculos trazendo o símbolo da queda; mas trazendo também a consciência eletiva de quem se atreveu a desvelar o mistério mais elevado: o da sabedoria que estava entranhada na árvore proibida, imaginado por Deus para que os homens sonhassem com sua própria divindade, mesmo a preço de aniquilar sua suposta semelhança com o Criador. Eva é, em síntese, o talento culpado que se arrepende de sua escolha racional, um pensamento gerador de contradições e a primeira tentativa de enriquecer o gozo herdado com o sonho da divindade, consumada no ato da criação. Com a humanização de Eva, o mundo realizou a etapa da morte de Deus e o renascimento racional por meio da paixão e do esquecimento. Eva está encarnada em cada mulher que pensa. Eva renasce naquela que, por seu talento criador, repete os ciclos da queda, da culpabilidade castigada e da restauração da ordem de uma fecundidade que não pode ser detida. 


1 Hadith é o registro narrativo das palavras ou costumes de Maomé e de seus discípulos diretos, o corpo coletivo das tradições relativas ao Profeta e a seus companheiros primitivos; Mariologia, termo cunhado em 1857, é o estudo da Virgem Maria ou o corpo de doutrinas e dogmas a ela referentes. Não deve ser confundido com a veneração ou adoração da Virgem, que é a mariolatria, designação em uso desde o século XVI. [N.T.]

Fonte: Mulheres, Mitos e Deusas
"Treina-te para deixares ir tudo o que mais temes perder."


Hera

Muito bom!

Eva será sempre a mãe de todas as mães! Digo eu.  :)